14/03;2015 | Welington Andrade

Reescrituras cênicas de Senhorita Julia fazem os personagens se precipitarem do palco à tela
A ocorrência nesta segunda edição da MITsp de duas encenações bastante diferentes de um texto clássico da dramaturgia mundial – Senhorita Julia, do escritor, pintor e fotógrafo sueco Johan August Strindberg (1849-1912) – convida ao ato inevitável de verificação de semelhanças e dessemelhanças entre elas, por meio da confrontação de suas respectivas potencialidades expressivas.
A história da moça aristocrata que seduz, em uma festa de são João ocorrida na propriedade familiar, o lacaio de seu pai, Jean, um jovem arrivista que rapidamente inverte o jogo de opressão de que foi vítima, passando a exercer um poder cruel sobre a senhorita manchada na própria honra e, por isso mesmo, transformada em presa do rapaz, é construída, como as demais peças em um ato de Strindberg, por meio de uma técnica dialética que, dentre as inúmeras tensões para as quais aponta, evidencia também um texto cindido entre os registros naturalista e psicológico.
Vale destacar que as encenações apresentadas nesta mostra constituem versões muito particulares da trama original, embora dela nunca se afastem de modo a tratá-la somente como pretexto. Outra coincidência das mais admiráveis é o fato de as duas montagens integrarem ao projeto da encenação a linguagem do cinema, suscitando efeitos de sentido de grande impacto junto ao espectador, baseados na exploração das ambivalências e dos hibridismos nascidos do encontro de ambas as artes.
A versão da Cia. Vértice, dirigida por Christiane Jatahy, parece investir toda sua força no reiterado jogo entre representação, imagem e simulacro que a diretora vislumbra no texto e no ativo diálogo da recriação deste com a estética cinematográfica adotada em cena. O fato de os empregados da casa serem negros – o que acrescenta à questão da distinção de classes presente no original o espinhoso problema da distinção de cor no Brasil – não aponta necessariamente para a eleição de um ponto de vista sociológico, uma vez que a atração mútua entre indivíduos separados pela cor da pele já é tratada aqui como simulacro; do contrário, a cena inicial, filmada, em que o cineasta pede que os empregados saiam do enquadramento soaria como um indesejável reducionismo. A pulsação da montagem advém do fato de a excitação nervosa vivida de modo naturalista pelo casal de intérpretes contrastar tão violentamente com as ausências de que se recobrem as imagens fílmicas, construídas sucessivamente como o próprio código do qual o infinito jogo de representação lança mão a todo momento. Se, para Baudrillard, “a vida é hoje um travelling, um percurso cinético, cinemático, cinematográfico”, o simulacro desta mobilidade contínua é a matriz da montagem, concebida por um fascínio próprio, a prescindir da realidade que simula reproduzir. Nesse sentido as imagens desta Julia estão mais filiadas à estética da televisão, dado o brilho luminoso e sem contras’tes que as tinge.
Já a versão da Schaubühme Am Lehniner Platz, dirigida por Katie Mitchell e Leo Warner, opta por recontar a história a partir do ponto de vista de uma personagem secundária, a cozinheira Kristin, que, embora testemunhe tudo de forma indireta, terá sua vida profundamente afetada pelos acontecimentos que envolvem seu quase noivo e sua patroa. Ao transformar Kristin no fio condutor da narrativa, a diretora leva os olhos do espectador a perceberem na cena o que de outro modo lhe seria indiscernível, explorando a linguagem do cinema não como recurso de significação disfórica, e sim como veículo de apreensão imediata, porém ética, da realidade. Há aqui a perseguição de um ethos na captação da imagem cinematográfica (quase sempre tingida por um inefável tom de âmbar), que faz vibrar os detalhes dos ambientes e do rosto humano – remetendo não somente ao cinema de Bergman (admirador confesso de Strindberg), de quem a diretora se diz tributária, mas também aos grandes realizadores do cinema mudo, dispostos a flagrar por meio de suas lentes aqueles instantes tão especiais de verdade e transparência.
A atmosfera da Julia dirigida por Christiane Jatahy é solar, intensa, apaixonada, explorando um ritmo alucinado advindo de diálogos crescentes que alternam amor e ódio. Por outro lado, o clima da Senhorita Julia dirigida por Katie Mitchell é delineado à meia-luz, produzindo uma experiência rítmica de outra ordem – distendida, interiorizada, fulcral –, a fim de levar cada espectador a sentir que “alguma coisa segue seu curso” para além do que está sendo mostrado na tela.
Talvez nós, brasileiros, não consigamos encarar a impiedade visceral que exala do teatro de Strindberg, atenuando-a sob a forma de um erotismo agressivo, sim, mas dissimulado pela inversão paródica que preside a maior das nossas festas: o carnaval. Julia e Jelson são as figuras centrais de um drama que aqui e acolá escapa em brincadeiras com cinegrafistas, espectadores, editores de TV e até mesmo com arremedos de passarinhos mortos.
Diferentemente, na versão europeia, Julia e Jean passam de protagonistas a figuras de fundo, levando a ser realçada a personagem com quem eles menos se importam. Senhorita Julia, de Katie Mitchell, é um agudo estudo sobre um opróbrio vivido sob o signo da renúncia e do silêncio – interrompido de tempos em tempos pela fricção quer das palavras strindberguianas, quer das cordas de um retesado violoncelo que ocupa a cena.