14/03/2015 | Valmir Santos

Ao deslocar o referencial dramático dos protagonistas para a coadjuvante, os criadores de Senhorita Julia não apenas reelaboram no texto o lugar da criada, valorizando o monólogo interior sem macular as demais vozes, como estabelecem no palco um sistema global de fluxo de consciência apoiado por outros níveis narrativos de imagens, sons e espaços. A alteridade que brota dos sentimentos de Kristin coabita também o público observador das operações cênicas e cinematográficas conjugadas. Trata-se de um percurso de contrações da alma.
Convidados pela companhia alemã Schaubühne, os encenadores britânicos Katie Mitchell e Leo Warner são poética e tecnicamente meticulosos. Convertem a cena em quadro multiplano, como numa composição de sentidos pictóricos atravessada pelo teatro e pelo cinema.
Mas o suprassumo da experiência é cênico. O urdimento da sala está à vista. Contrarregras vestidos de preto manejam tripés, câmeras, refletores, paredes do cenário. A marcação ostensiva do início logo é incorporada. Os atores saem de suas tomadas e executam as mesmas funções de bastidores com os respectivos figurinos de época. Bastidores, aliás, é o que não há nessa montagem de cunho periscópico e plena de fusões.
No canto direito, dois técnicos cativam a audição para a sonoplastia ao vivo, como nos tempos do cinema mudo. Essa perspectiva artesanal incide ainda sobre a delicada correlação da subjetividade de Kristin com elementos da natureza (terra, fogo, ar e água) que pontuam pensamento e memória. Flores colhidas no jardim de uma vida mantida à espreita e refletida naquele dia de verão, quando as paredes, as portas e as janelas da cozinha e de outros cômodos da casa transpareceram o caso de seu companheiro com a filha do patrão.
Os conflitos sociais e políticos intrínsecos à peça de August Strindberg (1949-1912) ficam em baixo-relevo, apesar de perceptíveis nos diálogos de Jean e Julia. A adaptação centra no sujeito colateral, na capacidade de Kristin aferir o que está em jogo, a ponto de cochilar sob vigília, e mesmo assim dissimular suas sensações, e aferra-se aos princípios morais, às convenções sociais, sublimando um eterno porvir. Postura diversa das personagens Mrs. Dalloway, do romance homônimo de Virginia Woolf, e Nora, da peça A Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen – ambas reagiram à vida, cada uma a seu modo.
A atuação de Jule Böwe transmite no olhar e na fisionomia um misto de estados de sonho e de medo da vida por parte da criada, a indulgência paralisante, como expressa na imagem final que preenche a tela superior com seu rosto. Culmina no close o aparato audiovisual posto a serviço do espetáculo, salvaguardando-se a escala humana dos gestos. Há uma profunda simetria na grandeza dos demais atores e outros profissionais em multiplicarem suas possibilidades de presenças e deslocamentos, caso da violoncelista Chloe Miller. A musicalidade é outro dos enigmas sutis e pungentes da encenação.
Em artigo de 1958, quando dava aulas em Porto Alegre, o diretor e crítico italiano Ruggero Jacobbi (1920-1981) anotou o seguinte trecho extraído do diário de Strindberg escrito na velhice, nos primórdios da técnica e da arte cinematográficas: “Que grande número de imagens luminosas é necessário tomar, no cinema, para se obter um movimento único, e apesar disso a imagem é ainda trêmula! Em cada vibração falta um intervalo. Se um milhar de imagens instantâneas é necessário para reconstruir um movimento de braços, quantos milhares serão indispensáveis para completar um movimento de alma!” A criação de Katie Mitchell e Leo Warner para a Schaubühne de fato perscruta a alma da coadjuvante e revela as pulsações vitais do clássico.
E, no panorama da 2ª MITsp, o entrecruzamento dessa versão com a de Julia, por Christiane Jatahy e Companhia Vértice, permite ponderar como as culturas de teatro e as realidades históricas dos países de origem (Alemanha, Inglaterra e Brasil) calçam as escolhas e convicções. Inscritas na contemporaneidade e profundamente inspiradas na linguagem do cinema, as duas produções, no entanto, evitam sucumbir suas teatralidades à poderosa visualidade da sétima arte. Antes, negociam sob códigos cênicos claros e essenciais, sem diluições de parte a parte.