09/03/2015 | Luciana Romagnolli

Ao fim da segunda apresentação de As Irmãs Macaluso, o professor e pesicanalista Renato Mezan apresentou ao público dos Diálogos Transversais um ponto de vista que, como bricou o mediador Valmir Santos, colocou os personagens no divã. “Psicanalistas têm um bótom escrito ‘eu acredito em livre-associação'”, disse Mezan, gracejando, ao recordar a própria experiência como falante do italiano ao se deparar com um livro escrito em dialeto do qual nada entendia, para ilustrar as declarações da diretora Emma Dante sobre o estranhamento das plateias italianas diante do espetáculo falado em siciliano.
“A palavra, a linguagem, mesmo para quem conhece italiano, soa ao mesmo tempo familiar e estranha. Como diz Freud num artigo famoso, ‘estranhamente familiar’. Em dois sentidos, tanto no de próximo (há uma proximidade que essas atrizes conseguem com o público por meio do movimento, da gestualidade e expressividade), quanto o familiar que se refere mui prosaicamente à família, e aí é um prato cheio”, disse, ressaltando a particularidade da perspectiva psicanalítica como uma entre muitas possíveis.
Mezan destacou, fazendo referência ao artigo publicado por Maria Lucia Pupo no catálogo da MITsp, o modo como As Irmãs Macaluso trata de sua aldeia (Palermo) para falar do universal ao ser humano: ter pai, mae e irmãos por quem se sente ciúme, ódio, amor. “Isso tudo é retratado na peça com intensidade muito grande e meios muito simples. É uma historia simples, com lacunas que vão sendo preenchidas pela imaginação do espectador. Vou dizer algumas que foram preenchidas pela minha e talvez pareçam sensatas a vocês”, sugeriu.
“Um ponto importante é o trânsito imediato – sem mediação – entre passado e presente, vida e morte”, observou. “Chama a atenção também, em termos de imaginação, uma coisa que é representada na peça e comum a todos nós humanos: a incerteza e aprecariedade da vida. E, na Sicília, entre os pobres – tema de Emma Dante –, é particularmente forte”.
Nesse sentido, o psicanalista notou a referência à gestualidade do Teatro dei Pupi para traçar a semelhança entre aquelas personagens e títeres manipulados. “Quem move as mãos das irmãs Macaluso?”, questionou. “Isso é evidente na movimentação final da Maria. Ela metaforiza que a vida é teatro de marionetes e nós somos marionetes nas mãos de… interrogação”.
Para ele, o manipulador – do ponto de vista da peça – não seria Deus. “Os crucifixos aparecem, mas Deus é curiosamente ausente . Está mais como um peso opressivo da religião, como ordem militar que evoca um funeral marchando, quase militar. Não aparece um Deus compassivo, Jesus ou um pai misericordioso. Nas mãos da sociedade?”, indagou. “Isso metaforiza o quanto a vida é frágil, somos títeres nas mãos não de se sabe quem. Shakespera diz: ‘“A vida é uma história contada por um tolo, cheia de som e fúria, significando nada’. A mim, essa questão do títere alude a que cada um de nós é um títere nas mãos de seu inconsciente, suas paixões e angústias. Isso vem sendo representado e llustrado desde que Freud escolheu Édipo Rei para nomear o complexo de Édipo”.
Outro aspecto destacado por Mezan foi o ciúme entre as irmãs, deflagrado pela preferência do pai pela caçula e concentrado na figura de Cátia. “No filme Freud – Além da Alma, do John Huston, uma paciente descobre que tem grande ódio pela mãe e fica horrorizada. Quando ele conta que também teve pelo pai, ela diz: ‘então você era um monstro’. ‘Não, eu era uma criança'”.
O pai, em As Irmãs Macaluso, é “vítima de uma exploração desenfreada e tem que engolir isso”, disse Mezan. “A outra metáfora da vida é a merda: aquilo que explode na sua cara quando você tenta desentupir o banheiro”, ilustrou, referindo-se a uma passagem da peça. “A culpa é outro grande tema. O pai acabou permitindo, por negligência e omissão, mais do que por crueldade, que a filha mais nova morresse”, observou.
“Aquela não parece ter sido uma casa onde se conversava. A mãe morreu e não era assunto de uma simbolização. Não se processou esse luto e, quando não se processa, fica entalado na garganta”, disse o psicanalista. “Por meio da culpa e dessas emoções, o passado não passou. Alguém falou que temos sempre 20 anos, e basta estender o divã para vermos que temos três meses, cinco anos, vinte anos. Nos sonhos, aparece o mundo infantil dos desejos e angústias”.
O mediador Valmir Santos levantou a questão do plano do inconsciente, representado pela penumbra ao fundo do palco. E Fernando Mencarelli, curador dos Olhares Críticos, ressaltou a imagem final da “morte que dança”. “Na dança é possível se expressar sem palavras, porque a linguagem falta a elas”, comentou Mezan. “Elas têm, talvez, um universo psíquico limitado, o mundo é estreito, o que faz com que as emoções não tenham muitos canais de expressão, embora sejam pessoas que têm o que expressar. Uma saída é a briga, outra é a dança”.
Outro espectador relacionou a dança à sublimação da frustração. “Frustração todos temos porque a gnte deseja tudo já com intensidade máxima e claro que não é realizável. O problema é que frustração demais mutila. E frustração de menos produz mimados, gente que acha que pode tudo e age impunemente. Na peça, há uma presença muito forte da frustração mutilante”, disse o professor.