10/03/2015 | Michel Fernandes

Clássico da dramaturgia moderna, motivo de um sem-número de pesquisas sobre sua estrutura que rompia com os cânones do drama burguês do século XIX, Senhorita Julia (1888), do sueco August Strindberg, recebe uma leitura contemporânea, Julia, de Christiane Jatahy, com a Cia. Vértice de Teatro (RJ), em que os problemas sociais apontados pelo autor ganham camadas de percepção ampliadas, seja pela fusão entre Jean (Jelson) e Julia aqui apresentados – um motorista mulato e uma patricinha mimada – por personagens com quem vez ou outra esbarramos, seja pela eficaz utilização da mídia cinematográfica criadora de linguagem justaposta, que permite perspectivas angulares diversas, como se, a cada espaço da representação apresentado – seja via tela cinematográfica ou no “ao vivo” teatral –, tivéssemos leituras complementares do espetáculo.
O prólogo apresenta um vídeo feito pelo pai de Julia, ao que parece, que a mostra ainda criança correndo alegremente pelo suntuoso jardim da mansão em que vive. Em determinado momento, a imagem avança no tempo e vemos Julia com expressão de garota mimada, daquelas que não economizam em birra para conseguir o que desejam.
Na noite em que se passa o enredo, o pai de Julia, possivelmente um funcionário bem-sucedido, precisa se ausentar deixando-a aos cuidados de Jelson, motorista da família, um mulato bastante atraente, conforme diz Julia em determinado momento. A noite está quente, o clima luxuriante toma a atmosfera da festa dos empregados da casa com direito ao tradicional churrasco e danças sensuais. Atraída pela festiva realidade de uma classe social que, definitivamente, não é a sua, Julia se mistura a seus empregados como um estrangeiro encantado com uma nova paisagem exótica que avista.
Eis que se instala o esboço da sedução entre Julia e Jelson, mas, evidentemente perturbado, o motorista aproveita para “escapar” para a cozinha, onde se encontra Cristina, a cozinheira da mansão e affair de Jelson. Cristina só aparece em vídeo e, assim como Jelson, é afrodescendente. O contraste racial só vem potencializar as diferenças de classe, a arrogância dos patrões com seus empregados, considerados inferiores e obrigados a satisfazer seus caprichos (aqui vale lembrar quando Julia ordena que ele beije seus pés e sente na cadeira).
Entretanto Julia vai atrás de Jelson, espia-o trocar de camisa e, em seguida, aparece apenas de biquíni nadando na piscina de sua mansão, enquanto ele, sentado com os pés na água, conta que, ainda menino, desejou estar na piscina com ela, mas nunca se atreveu a concretizar a ideia por ser filho do empregado, e ela, do patrão. Julia o puxa para a água, começa a brincar com ele, determinado a parar com tudo, prevendo que o jogo entre os dois poderia levar ao abismo social que os separa (ou seria uma cena a ocultar o desejo de Jelson em transar com Julia?).
O fato é que, ao ouvirem que outros empregados se aproximam, Jelson convida a patroa para se esconderem em seu quarto. A promiscuidade espacial do minúsculo quarto cabe muito bem à proximidade física que culmina no ato sexual. É notável a linguagem cinematográfica em seus recortes angulares que revelam e ocultam dados que só closes e outras tomadas fílmicas seriam capazes de captar. Posições sexuais, suor, expressões de gozo, unidos aos diálogos em que Jelson fala sobre seus planos de fugirem e abrirem um hotel, vão perversamente transformando o ato em humilhante ação para Julia, que percebe ter perdido o leme da situação e, agora, está sob os domínios do motorista. Ela recorda que, para abrir um negócio, é preciso capital e ela não tem nada, o dinheiro é do pai. Ele se aborrece com isso. Seria ela um joguete dos interesses de Jealson? Por vingança, ela o humilha, despreza a origem humilde do empregado, coloca-o no seu devido lugar: um nível inferior ao dela, mas Julia deseja Jelson. E Julia Bernat e Rodrigo dos Santos dão às suas personagens diversas matizes, necessárias para a constituição de seres ambíguos, imersos num paradoxo entre vontade e contravontade.
Mesmo que a linguagem naturalista do original seja mantida nos coloquiais diálogos de Julia, a linguagem cênica empregada por Christiane Jatahy está grávida de teatralidade, quer seja pela relação de ciência entre o intérprete e a câmera que o filma ou o público que a ele assiste, quer em cenas de transição do filme para o ao vivo, como na cena em que Julia deixa a piscina (onde estava no filme) e despeja uma garrafa d’água sobre os cabelos antes de entrar no quarto de Jelson (ao vivo).