15/03/2015 | Michel Fernandes

Que a linguagem teatral flerta há algum tempo com a imagem filmada já não é novidade. O que chama atenção no teatro contemporâneo é a forma como diferentes linguagens se contaminam e ampliam a pluralidade discursiva de enunciação. Assim é o que se dá em E se Elas Fossem para Moscou?, de Christiane Jatahy, cujas linguagens teatral e cinematográfica estão presentes seja qual for o lugar em que assistimos ao espetáculo – no palco da sala Sérgio Cardoso (ao vivo) ou na sala Paschoal Carlos Magno (em que a peça que se realiza na outra sala é exibida, concomitantemente, numa tela de cinema).
O consórcio entre cinema e teatro começa com o arranjo cenográfico (Christiane Jatahy e Marcelo Lipiani) transpondo o espectador que assiste à “filmagem” (versão teatral) para um set cinematográfico, em que o elo intimista unindo palco e plateia é estabelecido quer seja pela disposição dos móveis (o sofá, no início, e a mesa onde estão o bolo, bebidas e salgados do aniversário de Irina) que estão ao centro e quase no limite das primeiras fileiras, seja pela interação orgânica com o público (tratado como convidado da festa), em que a naturalidade e a espontaneidade performativa coadunam com a interpretação que nos parece esperada em filmes centrados em cenas cotidianas.
Isabel Teixeira, Julia Bernart e Stella Rabelo – respectivamente Olga, Irina e Maria – trazem a suas personagens aura tão genuinamente verdadeira e espontânea que fica quase impossível não se identificar com seus sonhos frustrados, desejos de mudanças, enfim, seus inevitáveis fracassos. Não há espaço para sentimentos exagerados nem lamúrias, em lugar disso, só humanidade, desnudamento de alma e lugar para o humor de quem ri de si mesmo.
Ao se inspirar em As Três Irmãs, de Tchekhov, para criar E se Elas Fossem para Moscou?, Christiane Jatahy preservou o clima claustrofóbico da peça do final do século XIX elevando à máxima potência a urgência daquelas irmãs em dar novo rumo às suas vidas. Se, em As Três Irmãs, Moscou está atrelada à memória afetiva de uma infância e mocidade felizes, em E se Elas Fossem para Moscou?, a capital russa é apenas o símbolo de um novo marco zero, a escolha aleatória de um lugar para começar de novo.
Diferente da matriz tchekhoviana em que todos os planos não dão certo e só resta às irmãs acomodar-se na cruel realidade, em E se Elas Fossem para Moscou? parece haver alguma centelha de mudança: Maria, por exemplo, se recusa a voltar a viver com o marido mesmo que seu romance extraconjugal se dissolva.
Além do enredo tocante, fomentador para que tomemos atitudes e nos obriguemos a re-ver nossas vidas e nos transformar, E se Elas Fossem para Moscou? apresenta uma linguagem de múltiplas camadas, nos apresentando surpresas prazerosas e complementares, que nos pedem que assistamos à versão frente a frente do teatro e a exibida na tela em outro espaço.
Na sala de teatro, por mais realista que seja o tratamento da cenografia, da interpretação, dos diálogos etc., a teatralidade está presente a todo momento: as atrizes narram dirigindo-se diretamente ao público, as câmeras estão visíveis para o público e para as intérpretes.
É na versão filmada que o ilusionismo realista se instaura, entretanto essa constatação é a que menos define a linguagem fílmica como complementar em E se Elas Fossem para Moscou?, antes são as edições das cenas, cenas novas que ocorreram em locais não vistos no “ao vivo”, dando novas perspectivas para as cenas, focos, closes, enfim, um olhar efetivamente direcionado. O que dá ao espectador prazer em assistir às duas possibilidades da mesma peça.