11/03/2015 | Luciana Romagnolli

Ainda antes de Arkadi Zaides entrar no pequeno auditório do Itaú Cultural, a professora Christine Greiner (PUC-SP) apresentou algumas ideias sobre o trabalho do bailarino e diretor israelense, partindo da questão política. “Há muitos anos não consigo discutir uma questão estética sem trazer junto uma questão política”, disse Greiner. “Toda experiência artística que trabalha radicalmente com desestabilização se coloca no mundo politicamente”.
Nesse contexto, Greiner recordou o livro Regulando a Aversão (Regulating Aversion: Tolerance in the Age of Identity and Empire), no qual a socióloga política Wendy Brown fala sobre tolerânica. “É um título muito provocador”, comentou. “À primeira vista, a tolerância parece uma coisa muito bem vinda, algo para o bem e para o convívio. No entanto o que ela fala nessa pesquisa – e ela é leitora do Focault – é que a tolerância tem se mostrado uma das linhas de força da governabilidade, ou seja, de uma conduta que quer regular a conduta. Então, muitas vezes ser tolerante já mostra uma hierarquia, uma relação de poder. A mesma coisa acontece com a terminologia ‘inclusão’, que já comporta a exclusão. Isso nos coloca numa sinuca: a gente fala tanto em produção de subjetividades, em redes e convívios, mas me parece que a segregação está tão presente em todas as circunstâncias”, disse.
Entrando no universo artístico de Arkadi Zaides, a professora observou que, em um espetáculo como Arquivo, cuja coreografia dialoga com registros em vídeo feitos na zona de conflito entre israelenses e palestinos, o diretor “traz uma situação extrema (de violência), mas seus deslocamentos estão super presentes na banalidade do dia a dia”. “Ele está pensando não as grandes maldades, a relação demônio-Deus, mas como alguns dispositivos formulados pelo pensamento religioso se secularizam, estão presentes no nosso coitididano e têm a ver com relações pessoais e com os modos como nossas comunidades se articulam ou não se articulam. E onde isso se se mostra mais é nas relações com o corpo”.
Para Greiner, há uma armadilha em representar a precariedade e a miséria, uma vez que ao se criar o deslocamento de um contexto no qual estavam inseridas, “é inevitável que haja esvaziamento de algumas questões”. “Outras se criam, mas umas se esvaziam”, apontou.
Outra observação contextual feita pela professora disse respeito à contradição entre os borramentos de fronteira próprios da contemporaneidade (seja pela comunicação, na arte etc.) e as práticas institucionais. “Houve uma época em que surgiram os estados-nação, divisão de territórios, passaporte, identidades… E, para definir tudo isso, há sempre uma noção substantiva. Em vez de pensar a nacionalidade como uma coisa substantiva e fechada, prefiro pensar que somos seres singulares e que vamos nos constituindo em processos. Mas na prática da imigração de cada país a gente vê como isso de nacionalidade é importante. Então a gente está numa encruzilhada: há alguma coisa que define de forma fechada aquilo que os sujeitos são, seus valores e seus atos, e todas as desestabilizações que aconteceram são questionadas o tempo todo por dispositivos de valor que regulam isso”.
Com a entrada de Arkade Zaides na conversa, Greine perguntou a ele como se deu a passagem de bailarino a criador. “Talvez a transição nunca tenha tido uma separação, eu nunca fui apenas um performer. Eu sempre interfiri nos outros aspectos da dança. Muito cedo comecei a criar trabalhos dentro da companhia, então a transição foi uma coisa gradativa e muito suave”, disse Zaides. Segundo ele, as questões políticas e sociais apareceram em seu trabalho mais tarde, quando realizou projetos artísticos com uma companhia em comunidades de Israel. “Isso me expôs a um clima politico do qual eu não estava consciente, então tomei a decisão de, enquanto estiver em Israel, trabalhar o politico e o social, que é o trabalho mais importante a ser feito”.
Zaides não trabalha com uma metodologia fixa. “Crio de acordoc om o raciocinio conceitual da obra”, disse. “Me interessa muito como é que nós podemos desafiar os nossos próprios modos de criação”.
Como curador, ele tem convidado artistas oriundos de realidades muito diversas. “Estou sempre pensando em como a localidade pode mudar o entendimento do seu trabalho”, comentou. “O fato é que eu estou sempre observando comumanidades diferentes e realidades diferentes. Meu olhar é muito sensível à política e ao aspecto social do lugar. Isso muda naturalmente o meu trabalho”, disse, acrescentando que não está “colado” a um contexto específico. Tanto que está para começar uma criação na Europa.
O artista conta que no arquivo de do Projeto Câmera de B’Tselem (o Centro de Informações Israelense pelos Direitos Humanos nos Territórios Ocupados) há mais de 4.800 horas de filmagem, algumas das quais constituíram o espetáculo Arquivo. “Assiti a muitas horas e escolhi alguns clipes. Fiz uma seleção bastante específica e um dos principais parâmetros foi a aquelas em que vemos apenas israelenses. Eu sou israelense, então estou confrontando o meu corpo com esse ciclo contínuo de violências no corpo da minha própria comunidade”, disse.
“No espetáculo, eu digo que sou israelense e que veremos israelenses. Estou demostrando minha posição como alguém questionando posições de sua própria comunidade. E esse tipo de questionamento pode ser aplicado a várias comunidades. Estou convidando todos a questionarem suas próprias realidades porque nesses debates é muito comum ver um lado acusando o outro e procurar solução apontando para o outro. Estou tentando mudar esse hábito. Vamos nos questionar em vez de acusar, porque, se cada um assumisse a responsabilidade por sua própria comunidade, poderíamos achar uma posição mais sensata”, concluiu.