12/03/2015 | Ruy Filho

O quanto é possível se proteger da história, do instante, dos acontecimentos? De alguma maneira, a realidade em estado de urgência contamina o indivíduo e, quando menos se espera, molda-lhe o inconsciente e posteriormente a própria consciência. Então, a história é a soma entre aquilo que o homem adota e o que a ele se coloca; a identidade é a face construída da historização do homem; a consciência, a dimensão participativa na confirmação do instante. A distância sugere falsamente certa proteção, contudo mascara a contaminação, finge o isolamento, enquanto o indivíduo se acumula daquilo que desconhece e tampouco quer. E muitos são os instantes na história, os acontecimentos que nos levam a querer distância. O homem se distancia do presente por um gesto defensivo de buscar ignorá-lo. Mas o corpo, resultante da inconsciência contaminada pela história, não. Gestos mínimos e comportamentos carregam a subjetividade do instante em sua latência inevitável e ininterrupta. Há neles a urgência transformada em vocabulário, certa tentativa de adequação às mudanças impostas ao como se portar e conquistar a sobrevivência. O corpo, por fim, revela aquilo que se deseja esconder; traduz a história de maneira espontânea e objetiva. E nada, nem mesmo o próprio indivíduo, é capaz de lhe tirar o discurso simbólico.
Arquivo, coreografia de Arkadi Zaides, inverte o mecanismo. Desprotege-se e expõe ao corpo a urgência dos acontecimentos nos territórios ocupados em Israel. Traz pelo gesto mimetizado o desenho do outro, como se, ao reapresentá-lo, travasse um diálogo sem pré-julgamentos. Ao acumular imagens dos corpos – catárticos, bélicos, histéricos, submissos, em repouso e atenção –, cria, em seu próprio, um vocabulário específico do comportamento frente aos acontecimentos que se poderia entender como particular e sintomático. As imagens de vídeos reais sugerem ao performer o gesto que ali identifica o instante. E o surgido ao espectador, por fim, é menos a dimensão do julgamento do outro e mais sua percepção como manifestação de afirmação. Em outras palavras, o corpo apresentado durante um estado de anormalidade possui características próprias de comportamento gestual, e isso independe do querer, pois não lhe cabe exigir de outra maneira.
Arkadi gera um discurso conflitante ao vivenciar os gestos. Ao sustentar as estruturas de corpos confinados em outra realidade, longe da segurança do palco, conduz o outro à ampliação de sua presença. Não se trata, porém, de defendê-los ou acusá-los, mas de verticalizar a dimensão inconsciente da ação, já transformada em discurso público e inerente aos fatos. A dança surge como inevitável constatação estética, consequente ao crescimento do vocabulário corporal, provocando na repetição um discurso vazio e urgente sobre esse outro estado de apresentação. Gestos largos, torções, desequilíbrios constroem frases de violência e apelo. O corpo traduz poéticas de solidão e explosão ao homem frente os limites de sua consciência sobre a plenitude dos fatos e de si mesmo.
Torna-se impossível distanciar-se dos acontecimentos, portanto. A dança, os movimentos, os gestos, as frases e expressões surgidas nas diversas cenas em vídeo e musicadas pela acumulação aleatória diminuem a sensação de proteção e isolamento do espectador, de modo que a história se revela efetivamente real e presente. Cabe apreender e sustentar esse convívio. Arquivo transfere ao espectador a condição de observador desses corpos específicos, do instante em pleno acontecimento, dos esvaziamentos dos discursos. A história se coloca insolúvel, simbólica desse outro ser, desse homem qual se prefere ignorar e abandonar distante.
Se por um lado Arkadi amplia nosso conhecimento do outro, também o faz com a realidade ao revelá-la determinante do desenho corportamental e do quão específica se tornara a representação do corpo conflituoso. O olhar esvaziado de respostas, o silêncio profundo e a tristeza verdadeira revelam um artista ainda em busca de explicações. Como se a tentativa de tornar seu corpo o outro fracassasse na busca por diálogo com o diferente. Sobra-lhe apenas o corpo exaurido de fôlego, de tentativas, de si próprio, do acúmulo da história, do desejo pelo mais profundo.