Por Carmen Luz
De tudo fica um pouco
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças
– Carlos Drummond de Andrade
Nossa, que ocupação! O que pode o corpo!
Foi assim, impactada, meio de boca aberta, produzindo, de súbito e afirmativamente, a questão de Espinosa e a pergunta de Deleuze, que entrei e caminhei – mais lentamente do que deveria – pelo Centro Cultural São Paulo à procura do espaço Ademar Guerra, onde estava programada a peça O que mancha, um dueto de Beatriz Sano e Eduardo Fukushima, a primeira criação conjunta da dupla de dançarinos.
A deriva e a alegria se instalaram logo no início da andada. Esbarrei com o convívio aberto de múltiplas comunidades em ensaios, treinos, aulas, conversas, namoros… Fui percebendo cenas diversas, as apropriações em prol do espelho, olhando peças de dança, descobrindo outras coreografias, compreendendo outros dançantes, cada qual com a sua dança; apreendendo um outro espetáculo da vida. Já perto da sala o superego gritou bem alto interrompendo o desvio. Desci, mas eu deveria ter tido tempo para dele me despedir. Aos poucos foi, não sem trabalho.
A sala está localizada no subsolo, seu teto, em parte, é aberto podendo ser vista da área de convivência. Fui a penúltima a entrar na sala, entrei devagarinho, a lentidão que pratiquei durante o atalho que me levou até ela ajudou nisso. A casa preta nos ensina que devagar também é pressa e a ter cuidado com o chão. Então…
Eu me sentei devagarinho na plateia silenciosa e com pouquíssimos lugares vagos. Ela estava tão lindamente quieta que me ajudou a – antes de me instalar – perceber tanto o som que vinha de fora quanto a presença da luz fluorescente situada no teto do andar superior. Um incômodo significativo – às vezes, um ataque – para determinados modos de produção, compartilhamento e fruição de obras complexas e delicadas.
Mas a peça seguia diante dos meus olhos presos entre o vigor do incômodo, alguma distração e perguntas sem respostas: o que ver aí, nessa onda vaga e expressiva? Como despotencializar o desconforto?
A ajuda carregada de força veio da plateia à minha frente. A luz sobrava, iluminava semblantes. Pude ver alguns, entrever outros. O público estava ali, inseparável de seus dois artistas e tudo o mais parecia fazer e ser parte de um continuum, de um mesmo horizonte. Especulei sobre identificação, a existência de comunidade, a pós-pandêmica reverberação do calor, a possibilidade e a realidade do encontro. A poesia não existe nos fatos? Imaginei e incorporei uma relação posta ali, entre palco e plateia um jogo de cura, uma vibração, uma energia, o fio de poder vital que liga, entrelaça, borda e constitui tudo.
O incômodo vazou do cavalo. O corpo encheu de ar. Entrei na peça.
Pelas manchas de um caderno de notas
O espaço cênico constitui um palco retangular elevado acima do chão e posicionado no centro da sala. O público ocupou três lados em torno do palco. Sobre o palco forrado com linóleo branco havia camadas de pó branco em toda a extensão. Acoplado às bordas do palco vários microfones para captação do som vocal produzido pelos dançarinos enquanto dançam.
Os figurinos: Beatriz Sano vestia um conjunto de calça e casaco com capaz de moletom vermelho e Eduardo Fukushima, uma camiseta e calça de malha preta bastante largas e muito gastas.
A trilha sonora é composta por sons gravados, música instrumental e sons produzidos ao vivo pelos dançarinos, captados pelos microfones acoplados nas bordas do palco, ampliados e processados em tempo real.
A luz desenha delicadamente as passagens com uso muito sensível do branco, lavanda e âmbar. Há imagens belas, especialmente as desenhadas no espaço saturado pelo encontro da luz e a poeira.
A criação e a dramaturgia traçam séries de relações entre o dentro e o fora do corpo de cada dançarino. Provocar o aparelho fonador, escutar das partes internas do corpo em um processo meditativo e vibracional, parecem princípios motores para a criação de sons que motivam a geração e composição instantânea de gestos e movimentos, como se: pinturas no ar, esculturas quase gasosas. Aborda os ciclos da vida, a continuidade incessante da vida, os trânsitos e a construção das formas sem fim. A morte. As memórias histórico-culturais.
Disparadores: Toda vida contamina, tudo é contaminado, tudo mancha e é manchado. Tudo reside em nós, tudo deixa resíduo. A vida é um sistema de forças e existências interdependentes e o contato é inexorável. A interdependência. A reciprocidade.
Conversas com uma dança
Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo.
Ver com os olhos livres.
– Oswald de Andrade
Quando entrei na sala, então, sobre o palco – coberto com linóleo e pó brancos -, os dois dançarinos já estavam em movimento, seus corpos materializavam dois seres. Eles estavam sentados e próximos, deslizando leve e lentamente, arredondados em seus apoios. Murmurei: bonita abertura. Suas roupas e corpos evidenciavam as marcas de inscrição e uso no tempo, no espaço e no pó. Escuta, imaginação e produção no ato.
Boa dica: Se corpo é som. Escutemos!
Ali uma dança de contato, com presenças que vemos e outras que não enxergamos exatamente, uma dança vigorosa, onde pés e mãos pintam abstratamente o espaço e fogem, radicalizando uma máxima do instante que quando chega já passou. A abracei, justamente pelo que faz deslizar e manchar, atualizando incessantemente as dinâmicas do rito: o pó, dispositivo de entrada, belamente instalado no palco pra manchar, desenhar, garantir atritos, improvisar, encantar, fugir, desobedecer, proteger, socorrer, animar tudo – até nós, as sentadas ao redor- e vivificar nossa aderência.
Lá sons, gestos, posições e movimentos são aberturas pra sonhar, imaginar uma “poesia de fatos” e outros fatos: pássaros, crianças brincando, insetos, velhos, casais, pedra, reconhecemos a memória trágica, um avião que passa sobre as cabeças indefesas, o protesto com as armas que se tem, o cansaço, a fragilidade do corpo pronto para tornar-se outro vivente.
Acolá uma dança de esconde-revela, um jogo de abstrai-concretiza, desenho-desmancha, simples, atrevidinho, delicioso, pequeno. Nada é grande ali nem tão alto. De repente o céu parece perto demais, gestos, movimentos, as dimensões e localização do palco, assim como meu lugar na plateia me levam a que talvez até ele pudesse tocar o chão. O som conduze as imagens. Escuta-se o movimento do som borrando o gesto.
Onipresente segue o chão forrado de sagrado, incessantemente convocado. Nele e por ele geram-se suores, robustez e infinitas formas de vida; surgem aves, crianças, insetos, fantasias, projeções, sons impossíveis, cópias.
A poeira subia do chão, saltava das roupas gastas dos seres materializados em formas definidas e outras em transformação. E se a materialização dos camponeses avisasse sobre a bomba por-vir? Seriam sons a poeira saída dos sons?
Dança pra guardar e convocar forças, memórias, vivências, acessos. Onde tantas outras formas de vida em constante mudança. contato inexorável entre tudo que existe.
Uma dança de pausas breves e repetições que me fizeram retornar à “alegria dos que não sabem e descobrem”. Pelos gestos e movimentos, ritmos e timbres, sonoridades e dinâmicas corporais as intensidades de tudo o que existe impera; de gente, bichos parentes, pedra, rio, bomba, proliferam.
Inauditos juntavam-se às bocas, que não paravam de dizer algo e mais algo, indecifráveis, mas curiosos e, às vezes, engraçados em seus diversos volumes. Uma finíssima sensibilidade habita O que mancha, ao mesmo diapasão a obra nos convoca.
Contemplo uma dança que dança a própria escuta. Uma dança da vida… e da morte como passagem. Dança de penetrar e, talvez, viver tudo.
Mas, de fato, O que mancha é uma dança de exercícios e ofícios sofisticados. Sua matéria é o corpo atento ao ritmo que demanda, ao tudo o que ele pode.
O resto poderia ser silencio, mas é deriva – como e agradecimento.