por Vinícius Araguaya
O galpão escuro retro-futurista da “fábrica Pompeia” recebeu acontinua – um obituário, um manual para uma vida vivida perseguindo a VIDA, com nora chipaumire. A projeção de uma mulher negra de óculos de soldador em um quintal baldio ocupava o lado direito da cena, onde estavam dois performers iluminados pela luz direta e cortante de um potente elipsoidal. Eles vestiam armaduras com ombreiras, chocalho e levavam uma calimba-mbira a tira-colo.
Estavam presos a cordas que tensionam o que parecem ser um paraquedas. Os performers executavam movimentos mínimos com os braços e arqueavam a coluna como se caíssem do céu ou invocassem novidades desse mesmo céu. Suas imagens foram espelhadas pelo corte da luz dura, formando um teatro de sombras em que se agigantam em grandes entidades guerreiras caídas do céu. A música, pelo seu padrão ritmo e melódico era africana e se repetia feito os gestos: ora designavam uma queda livre ora um exercício de resistência.
O performer e a performer levaram 30 minutos para nitidamente se moverem ao sentido oposto do palco, o seu percurso. O chão cheio de quadrados de 1×1 metro, se assemelhava a um grande tabuleiro. Esse tempo foi suficiente para instaurar seus códigos. O performativo se presentificou numa obra que é uma instalação, onde a coreografia dependia da luz, do som, da projeção e da espacialidade para operar. A melodia se repetia, vinda de uma guitarra ou de um sopro estridente, a percussão polirrítmica e a marimba. Um quadro vivo de luz, som e carne. A coreografia nos carregou por todo o tempo e espaço criando uma realidade a partir do movimento mínimo. O efeito é um transe.
Nas camisas que os performers vestiam sob a armadura, conseguimos distinguir a palavra Kalunga, o patrocinador do time de futebol estampado na camisa. Esse detalhe, a única palavra que salta de tudo o que é mostrado, projetado, cantado e gritado, nos remete a algo muito mais vasto: a palavra calunga se inscreveu na lusofonia podendo significar muitas coisas. Para os pernambucanos, podem ser alegorias de carnaval. Para outros, entidades espirituais. Para paulistas, uma rede de papelaria. Para angolanos, o sentimento de imensidão que o mar provoca, Para goianos, o sentimento a vastidão que a terra sem fim, por todos os lados, instaura.
A polissemia de calunga é transferida aos movimentos mínimos da coreografia. A obra mobiliza nosso imaginário sobre África, pela imagem, pelo som e pelos corpos da dupla de performers, um homem e uma mulher, como Adão e Eva distópicos que refundam o vasto mundo a partir da eloquência dos movimentos mínimos.
Este texto é uma produção para as Escritas Primordiais, da Prática da Crítica, no eixo Olhares Críticos da 10ª MITsp. A atividade é coordenada por Rafael Ventuna, com supervisão de Sayonara Pereira e produção de Alice Mogadouro.
Vinícius Araguaya é dramaturgo e fazedor de filmes, formado em Audiovisual na ECA/USP e Dramaturgia pela SP Escola de Teatro. Foi produtor executivo na EBC/TV Brasil e é diretor da Transficção Filmes. Publica suas crônicas e outros escritos no vinidrama.substack.com