por Thiene Okumura
O que é saber lidar com a morte? Quanto tempo dura um luto? O que morre no outro quando algo/alguém morre? O que fica? Essas foram algumas das muitas reflexões que me atravessaram em Réquiem SP.
Quando a vó Tonha morreu, eu não dormi. Dois meses pedindo que meu pai ficasse comigo até que eu pegasse no sono. Uma criança de dez anos em sua primeira grande perda. Até hoje quando eu fecho os olhos, consigo sentir o cheiro da terra do cemitério e ver os corvos voando, confusos e cinzas. Eu era um deles.
Numa revoada de corvos alvoroçados, buscando por novas associações a partir da morte, Réquiem SP propõe escancarar os atravessamentos ocultos, ruínas e renascimentos do processo de luto.
Do latim requiem (repouso), termo associado à preces em homenagem a uma pessoa já falecida ou missa para os mortos na igreja católica vem apresentado através de signos: cenário e figurinos pretos, uma orquestra e um coral misto cantando músicas em latim, traçando uma mistura de sons, pulsos, com teatralidade, fazendo com que o público mergulhe numa atmosfera com um tom ecumênico.
Com toda a subjetividade e olhar metafórico, a obra traz a potência de associações e intimidade com o processo de perda de todo e qualquer ser humano.
No trabalho, criado, dirigido e coreografado por Alejandro Ahmed, sob direção musical e regência de Maíra Ferreira, os 17 bailarinos deslizam por uma linha irreversível e visceral.
Em dois atos contínuos, intercalados por um interlúdio, Réquiem SP é composto por sequências de repetição com níveis de explosão e quedas, bailarinos sambando enquanto deságuam em choro, performando a alegria, usando “máscaras” para esconder o que não se quer mostrar, do breu à luz, mudando o cenário do preto ao branco, “desafiando a morte” com uma moto em cena, utilizando-se de manobras e rodopios, como num globo da morte, traz inteligentes escolhas nos levam a identificar muitos dos sentimentos vividos quando se há perda: medo, raiva, revolta, confusão, angústia, busca por paz, a solidão, desistência. Até que no último ato, os bailarinos entram numa espécie de transe, atônitos, numa imagem cerebral, onde sinapses entram em pane. Desconfiguram. Concomitantemente à cena, a cortina sobe e desce, dando a impressão de que chegamos ao fim, mas não acaba. Uma ação que traz algumas interessantes analogias de que a vida não acaba na perda, o luto também não. Existe o depois.
A menina de dez anos ainda continua sendo um corvo na revoada. Mas agora é um corvo com novas cores.
Este texto é uma produção para as Escritas Primordiais, da Prática da Crítica, no eixo Olhares Críticos da 10ª MITsp. A atividade é coordenada por Rafael Ventuna, com supervisão de Sayonara Pereira e produção de Alice Mogadouro.
Thiene Okumura é atriz, diretora de movimento e mãe. Graduada em Licenciatura em Teatro (UFPEL). Sócia-fundadora na Doma Dança, integrante do Coletivo Impermanente de Teatro e pesquisadora do teatro butô e suas ressonâncias.