Com o público ainda acomodado nas cadeiras do Teatro João Caetano, escuta-se o áudio da vinheta gravada com a voz de Vera Carvalho, mãe da atriz Jéssica Teixeira, dando as boas-vindas à plateia com informações usuais que recebemos ao entrar no teatro: como desligar o celular, avisar que oespaço está equipado de acordo com as normas de segurança etc., e entre essas recomendações, uma delas chama atenção e dá o tom do que será a proposta em cena:
“Cada um esteja ciente de suas necessidades e das necessidades dos que também estão presentes. Olhem para os lados e percebam o quanto são diferentes uns dos outros”.
A peça E.L.A., solo da artista cearense Jéssica Teixeira, com direção Diego Landin, (res)significa a visão colonial de corpo “perfeito” sobre os corpos que seriam “estranhos” segundo essa mesma ótica.
No escuro, uma voz em off nos apresenta Ele e Ela. Ela é silenciada ou fica pra depois d’Ele, pois Ele chega primeiro e geralmente “chega gritando ou grunhindo estranhamente feito um rinoceronte”. Ela, muitas vezes, não tem a oportunidade de falar.
A voz em off termina e a plateia é surpreendida, se acendem abruptamente as luzes, fazendo com que o público esquive o rosto da luz; mas, aos poucos, os espectadores vão se acostumando, assim como Jéssica foi se acostumando com Ele.
Ao som da música Spanish Keys, de Miles Davis conhecemos Ele (corpo) e Ela (pessoa).
O espetáculo encontra força nas suas imagens. A atriz busca partituras coreográficas específicas a cada fala. Assim como Jéssica se apresenta no início da peça dividida em dois: Ele e Ela. Essa ruptura e fragmentação se dá também por imagens no decorrer do espetáculo. Ela dialoga, por exemplo, com uma escultura do seu corpo pendurada no alto do teatro, ou mesmo com suas imagens fragmentadas em videomapping.
E uma cena emblemática, Jéssica vai lentamente, despindo o figurino e revelando seu corpo. Em seguida, ela pendura seu corset de cabeça pra baixo em um gancho que surge do teto. Pega no chão cada pedaço do figurino e vai abotoando e montando outra estrutura, “outro corpo”, num formato diferente. Jéssica questiona a plateia com esse gesto, como se perguntasse: Há algo no seu corpo fora de lugar? Ou ainda: Por que só são aceitos corpos com que reproduzem a mesma estrutura corporal?
A artista constrói uma dramaturgia apoiada em textos teóricos (como o livro O Corpo Impossível, da pesquisadora Eliane Robert Moraes) e na sua própria biografia para criar, em cena, um misto de depoimentos e cenas performáticas.
Suas escolhas dramatúrgicas colocam em destaque questões históricas que envolvem a redução do corpo a nada e também a uma ferramenta de dominação.
Como na cena em que Jéssica descreve um estudo do químico inglês, Dr. Charles Henry Maye, que se empenhou em estabelecer de forma exata de que é feito o homem e qual é seu valor químico. Essas diversas matérias-primas avaliadas (gordura, ferro, açúcar, fósforo, magnésio, potássio e enxofre) representam uma soma de R$ 97. Reduzindo o valor material do corpo humano a quase nada.
Ela também apresenta Josef Mengele, médico que, durante o nazismo, assumiu a liderança de procedimentos científicos em indivíduos que aparentavam ter algum tipo de deficiência física ou psíquica. A atriz lembra que, para Adolf Hitler, o maior princípio da beleza era a saúde. “Então, por que não exterminar todos os outros que não se encaixavam nesse padrão?”, ironiza Jéssica.
A atriz faz de seu corpo matéria-prima do seu trabalho, um manifesto. Jéssica não admite ser um “corpo dócil”, como nas ideias de Michel Foucault, um corpo domesticado, um corpo submisso à (re)produção dos mesmos conhecimentos e da manutenção de discursos hegemônicos e dominantes. O corpo que está em cena é fortaleza, é ser político, é sujeito. E se no início do espetáculo vemos uma ruptura entre Ele e Ela, ao final, ambos se encontram, se descobrem e se aceitam tornando-se potência de atuação no mundo e reafirmando que todos os corpos e corpas são possíveis.