Encontro entre dois públicos – Crítica do espetáculo Estádio, por Michele Rolim

Nos anos 1920, uma das maiores diversões dos berlinenses era o boxe. O dramaturgo e diretor alemão Bertolt Brecht (1898-1956) comparou torcedores do esporte e espectadores de teatro. Para ele, o espectador deveria ser entusiasmado como um torcedor. Ser íntimo do teatro, assim como um torcedor que conhece esquemas táticos, características dos jogadores e regras. Ser um público especializado!

Os paralelos entre espectadores de teatro com os das arquibancadas estão presentes no espetáculo Estádio, que abriu a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo de 2022. A peça é assinada pelo diretor, ator e escritor franco-marroquino Mohamed El Khatib, que investiga o teatro documentário. O diretor esteve na MITsp em 2019 com Partir com Beleza, que relata a partida de sua mãe, que faleceu devido a um câncer. 

Em Estádio ao invés de atores, estão em cena torcedores do clube de futebol RC Lens, conhecida como a melhor torcida da França. O clube está localizado na cidade de Lens, no norte da França, região onde existem centenas de minas e operários. 

A maioria dos textos da peça são depoimentos e entrevistas destes torcedores, às vezes expostas em transcrição literal, às vezes  reescritas. Trata-se de um material documental que não tem necessariamente vocação dramática.

Podemos pensar que tanto o teatro quanto uma partida de futebol são um espetáculo, ou seja, um evento estético destinado ao público. 

O futebol e o teatro têm origens em ritos sagrados. Precisam de um espaço e de um público. Ambos requerem técnica e preparação, não podem ser executados de forma individual, trata-se de um fazer coletivo. Tanto o futebol como o teatro são capazes de gerar no público uma catarse. São capazes de produzir, no instante da peça ou da partida, uma espécie de comunidade efêmera, que torna possível às pessoas experimentarem uma outra existência no tempo de duração da partida ou do espetáculo. “Eu esqueço todos os problemas no instante da partida”, declarou uma torcedora. 

A peça tensiona a violência dentro dos estádios, mas também coloca um outro ponto de vista, a criminalização das torcidas de futebol, como uma perseguição a uma determinada classe, no caso da França a classe social com pouco poder aquisitivo. Nada muito diferente do que vem sendo feito no Brasil de Bolsonaro com os artistas, que tiveram peças censuradas e a falta de recursos públicos para seguir seu ofício. Como se lê em uma das faixas da peça: “Somos violentos, nem mais e nem menos que a polícia”, e que podemos entender a “polícia” como “o braço forte do estado”. A aproximação com o Brasil toma corpo quando entram torcedores do Corinthians na peça, a camiseta do Brasil e a situação política do país. 

Mas talvez o que mais aproxime o futebol do teatro esteja atravessado pela dimensão pública: o convívio social. Sua importância fica evidente pelos depoimentos em tom confessional dos torcedores em cena: “o futebol dá sentido à vida de uma comunidade”, como declarou um deles. Ou ainda pela figura da matriarca, de 89 anos, cuja a perda da filha é lembrada e celebrada a cada partida de futebol, acompanhada da numerosa família. 

Tanto estar num estádio como na plateia do teatro representam um momento de encontro e celebração e despertam no indivíduo uma sensação de pertencimento a uma comunidade.

Como afirma o pesquisador argentino Jorge Dubatti “Não se vai ao teatro para estar sozinho: o convívio é uma prática de socialização de corpos presentes, de afetação comunitária”.  Para ele, é nesse acontecimento convivial que “o espectador constrói sentido sobre si e conhecimento sobre o mundo, elabora um espaço de intimidade que pode adquirir uma função social reparadora”.

Em uma era na qual a tecnologia e as relações virtuais predominam, em que as políticas endurecem e os direitos democráticos passam a não serem respeitados, os encontros são um ato revolucionário. Portanto, os espetáculos que invocam a presença e fortalecem o convívio são também atos políticos. 

Sendo ambos tão próximos, por que um é considerado arte e outro não? Por que é mais fácil lotar um estádio de futebol do que uma sala de teatro?

Essas provocações aparecem explicitamente quando os torcedores estendem uma faixa durante uma das cenas, que diz: “Procura-se desesperadamente público”. Uma provocação do público de futebol ao público do teatro.

Durante toda a peça o diretor lança perguntas aos torcedores e, ao final, a lógica se inverte. Jonathan, chefe dos torcedores do clube, pergunta a Mohamed:

“Existe uma verdadeira liberdade de expressão no teatro? Quero dizer, maior do que nos estádios? Quando você vê um espetáculo medíocre, você pode realmente falar isso?”.

“A Arte já derrubou relações de dominação?”.

“Os moradores de Lens trabalham no Museu do Louvre em funções de limpeza e segurança, eles não são inteligentes o bastante para trabalharem em outras funções num centro cultural?”. A inversão do entrevistado para o entrevistador tensiona o lugar dos espectadores teatrais para pensarmos na dimensão pública dessa arte, na qual nem sempre convivem, no mesmo espaço e tempo, pessoas heterogêneas, com capitais sociais e culturais tão distintos, como no futebol. De que modo o espectador está implicado na cena? Mohamed não responde a essas perguntas, mas seu espetáculo talvez seja em si uma boa resposta aos dois públicos.