Crítica escrita a partir do espetáculo Hamlet, por Clóvis Domingos (Horizonte da Cena/MG)

Ser e não ser uma peça de teatro. Ser e não ser uma performance. Ser e não ser um concerto musical. Ser e não ser teatro documentário. Ser e não ser real. Ser e não ser ficção. Ser masculino e ser feminino. Ser humano e ser animal. Ser e não ser. Ser e não ser corpo. Ser e não ser imagem. Ser fragilidade e ser força. Ser e não ter identidade. Ser verdade e ser mentira. Ser e não ser Hamlet. Ser Julian Meding e ser Hamlet. Ser Shakespeare e ser Boris Nikitin. Ser e não ser alguém. Ser silêncio e ser som. Ser e não ser e talvez aí ser uma questão. Não ser para ser uma questão. Entre o ser, o não ser, o que devemos ser, o que fingimos que somos e o que talvez jamais sejamos, os artistas Boris Nikitin e Julian Meding criam um trabalho cênico inusitado e repleto de perguntas, experimentações, cruezas, conflitos e angústias. Acompanhado por um quarteto barroco, o performer e músico eletrônico Meding, como se atualizasse um Hamlet contemporâneo, tenta borrar os limites entre cena e vida, autobiografia e autoficção, depoimento e espetáculo, corpo e palavra.

No corpo torto e andrógino de Meding, em seus inumeráveis estados de ser e não ser, podemos perceber a negação a qualquer forma de categorização e regra se fazendo marca e ferida, a partir de uma poética da revolta. Forte trabalho de presença no qual o corpo do artista assume sua posição de desvio e fragilidade frente às normas que regem a vida social. Para isso, uma luta é travada a fim de manter-se desejante, resistente, criador e rebelde.

Julian Meding, um jovem como também foi Hamlet, mostra-se inconformado com um mundo de aparências e falsas promessas de felicidade e parece não ter medo de fazer contato com suas dores, sua sanidade (ou diremos que é loucura?), sua solidão. Encanta por meio de seu desencanto. Não por acaso, esse Hamlet vaga solitário por um palco vazio enquanto nos relata fatos de sua infância e outras histórias de sua vida, materiais que podem ser tanto subjetivos como também inventados, pois Meding-Hamlet nos lembra que ali tudo é permitido, já que “estamos no teatro”. Com fina ironia, aliada a um evidente comportamento melancólico e desiludido, a atuação de Meding sugere oscilar entre sinceridade e manipulação, causando um desconforto que a meu ver seria proposital, pois nos obriga a lidar com o instável, o fugidio, o que não podemos facilmente decifrar ou classificar. Aí parece estar um dos pontos principais de Hamlet: sua recusa a se tornar nomeado, fixado e apreendido.

Nesse ponto, o trabalho desestabiliza qualquer gesto que se pretenda alinhavar os fios soltos e dispersos de uma figura-corpo-presença que não aceita o “convite para entrar em nosso congelador” (trecho da primeira canção executada durante a apresentação). Se a presença magnética e raivosa de Meding às vezes pode ser lida como distância e impossibilidade de encontro e entendimento, paradoxalmente o performer vai nos convocar à criação de uma comunidade na qual a solidariedade possa ser um princípio e procedimento. O espaço do teatro poderia servir para se criar laços solidários, apesar das diferenças, das convenções estabelecidas e daquilo que nos separa? Como migrar o lugar do pagamento de um ingresso para se adentrar no ingresso de uma nova comunidade de seres viventes? Nessa parte do trabalho o artista não parece estar representando, mas de fato nos provocando a pensar e sentir outras formas de se fazer política cotidiana e afirmativa da vida em sua diversidade, não mais pelo viés da patologização, mas aceitando-a em seus múltiplos contornos, em suas pulsações e expressões, linhas de fuga e desejos, movimentos e rupturas. Do isolamento e da solidão para a solidariedade. Por isso o artista se coloca frontalmente e se dirige o tempo inteiro a nós, da plateia.

O corpo em Hamlet ganha destaque em seu desequilíbrio e precariedade compartilhados. Corpo que constrói, destrói e reconstrói. Corpo que produz saúde e doença. Corpo não confessional que se sustenta como enigma. Subjetividade em deslize. Corpo-órfão de mundo-orquestra que o relega às margens. Corpo-concerto que nos decompõe: “você está meio acordado e gostaria de sair, mas é preciso lembrar que estamos de frente para o espelho”. Julian Meding nos confronta com imagens projetadas em um telão, exibindo corpos feridos, envelhecidos e asilados, e com isso não nos poupa de uma realidade que a todo custo tentamos negar ou esquecer. Dessa forma, corpos excluídos entram em cena para mais uma vez nos lembrar de uma possível comunidade solidária. É como se nesse momento Meding-Hamlet atirasse uma pedra sobre nossas vidraças de proteção e nossos espelhos, um ato capaz de nos despertar para a potência da vida.

O quarteto musical que acompanha o performer cria atmosferas sensíveis e, a partir de paisagens sonoras perturbadoras, dialoga com os momentos de maior tensão do trabalho. Também oferece fragmentos melódicos que refletem a dor de uma alma atormentada e dividida que se comunica com a modulação vocal insólita do performer. Uma dramaturgia textual que consegue articular materiais tanto da obra shakespeariana quanto da subjetividade do artista. Da mesma forma que a utilização do telão é condizente com a proposta de se problematizar as incontáveis maneiras de se constituir e não se constituir como identidade, sujeito, espectro e multiplicidade.

Hamlet habita um território intermediário entre o ser e o não ser: lírico e épico, sombrio e luminoso, estranho e familiar, entre a agressão e a carícia, a memória e a imaginação. Uma experiência nos interstícios e fronteiras, lacuna e respiro, num mundo cada vez mais asfixiado e intoxicado por desejo de identidade.

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