Crítica escrita a partir do espetáculo Palmira, por Clóvis Domingos (Horizonte da Cena/MG) 

Ao lermos a sinopse de Palmira, criação de Bertrand Lesca e Nasi Voutsas, somos informados que o trabalho é inspirado na destruição da antiga cidade síria, que por muito tempo foi considerada Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco como um dos mais belos e importantes locais do mundo por causa de seus famosos templos. Mas em 2015 foi invadida pelo Estado Islâmico, ocasionando destruições, mortes e toda forma de violência. Mais do que a inspiração da história de uma cidade assolada pelos horrores da guerra, a peça aborda questões mais complexas, como diferença, alteridade e dominação.

No início, temos no palco apenas duas cadeiras dispostas cada uma de um lado. À uma certa distância, junto a elas, há a presença de um prato no chão. Mas aqui existe uma diferença: tem-se um prato intacto e um outro quebrado. Ao segurar os cacos do prato destruído, Nasi nos pergunta: “o que aconteceu?”, e depois conclui: “pegaram pesado mesmo”. Logo depois, sobre um skate, Nasi se equilibra e dança conduzido delicadamente por Bertrand ao som de Lascia ch’io pianga, de Georg Friedrich Händel. Até que a divertida coreografia apresentada com poses de balé aos poucos vai se tornando agressiva e começa a revelar como Bertrand tenta a todo custo derrubar e ferir Nasi. A melodiosa obra de Handel contrasta com a queda do corpo de Nasi. Após esse momento, agora separados e deitados cada um em seus skates, os atores cruzam o palco até se chocarem e um embate é enfim deflagrado. Esse começo do espetáculo aparentemente leve e despretensioso se mostrará então como um engano, pois a partir daí a tensão e o conflito crescerão num ciclo interminável de destruição, materializado no palco que se transformará num cenário de restos e ruínas, tanto concretos, pela enorme quantidade de pedaços de pratos espalhados pelo chão, quanto evidenciados pelos efeitos psicológicos devastadores originados pela falta de controle e de entendimento entre os dois homens.

A meu ver, o espetáculo realiza uma operação metafórica para falar de destruição e retaliação na Síria, reconfigurando tal problemática para o campo da relação travada entre os dois artistas, isto é, se migraria de uma dimensão geopolítica para o território dos afetos humanos. Por que precisamos exterminar e colonizar os outros? Como agir quando avaliamos que os outros não nos compreendem? A partir de quais referências acreditamos que somos culturalmente superiores e mais civilizados? De quais armas, poderes e discursos nos utilizamos para nomear e rotular o diferente de nós como bárbaro e primitivo, logo, submisso? Bertrand tem poder sobre Nasi, o desestrutura e quase o enlouquece, e busca na plateia a necessária cumplicidade para que isso aconteça. Ao pedir que alguém do público fique responsável por guardar um martelo que poderia se tornar uma perigosa arma nas mãos daquele que o tempo todo é insultado e desrespeitado, Bertrand tenta nos convencer de forma irônica e cínica que Nasi está dominado pelas pulsões e instintos animais e que ele (Bertrand) nenhuma responsabilidade tem sobre tal fato. Um tenta se utilizar de um martelo real e por isso é criminalizado, enquanto o outro fere a golpes a dignidade de seu oponente com um martelo ideológico e revestido pela força da palavra. Nesse ponto, Palmira nos provoca a pensar sobre quem de fato possui a arma mais eficaz e poderosa.

Mas há em cena um terceiro martelo quase imperceptível, tamanha a sutileza e destreza com as quais ele é manuseado: a sedução. Através de sua atuação, Bertrand manipulou a plateia, que no caso da apresentação por mim vivenciada, facilmente aderiu a seu jogo proposto e talvez não tenha percebido as artimanhas que ali se engendravam. Uma delas foi mesclar seu texto (ora falado em inglês ou francês) com expressões em língua portuguesa; ou então solicitar a ajuda dos presentes para traduzir seus argumentos, no intuito de nos convencer. Algumas pessoas do público atuaram talvez seduzidas pela deliciosa (ou enganosa?) sensação de fazerem parte daquilo, mas parecem não ter assimilado que estavam sendo capturadas. Para o colonizado nada mais agradável ou reconfortante do que se sentir parte do projeto do colonizador estrangeiro europeu e ocidental. A plateia que poderia se contrapor ou até mesmo “complicar” o jogo quase sem risco e bem arquitetado dos atores, na verdade o alimentou. Nos transformamos em intérpretes passivos e pacíficos, além de colaboradores de um ritual público de humilhação. Serão a falta de reação e revolta, típicos sintomas de uma audiência brasileira?

Daí Bertrand se referir à jovem negra da plateia a quem ele confiou o martelo para “protegê-lo” de Nasi: “Você é francesa? Mas você parece ser francesa!”. E depois narrar os maravilhosos templos e museus culturais de Paris que a jovem brasileira deveria visitar na sua companhia e que certamente iriam lhe deslumbrar, e melhor, a tornariam mais culta. Nenhum de nós juntou os restos da dignidade violentada de Nasi, mas pelo contrário, a espalhamos ainda mais, fragmentando-a e distanciando-a de sua humanidade. Há Paris, falta Palmira. Talvez porque sejamos um pouco Nasi? Ou teremos mais de Bertrand em nós? Os pratos quebrados, mais do que os templos saqueados e destruídos da cidade síria, a mim agora remetem às vidas que não são consideradas existências dignas, como bem salientou Judith Butler em seu livro Quadros de Guerra: “quando uma vida é passível de luto?”. Vidas que pouco importam. Num país com imensas desigualdades econômicas e sociais, Caetano e Gil já nos indagaram: “O Haiti é aqui?”. Hoje me pergunto: ou aqui também será Palmira?

Compartilhar