Crítica escrita a partir do espetáculo King Size, por Julia Guimarães (MG)

Existe, em King Size, uma lógica de contrastes e de desvios que leva o espetáculo a um estranhamento permanente de si mesmo. Em cena, vemos um casal que dorme na mesma cama, mas não se toca; uma senhora excêntrica que cruza constantemente o espaço cênico sem motivo aparente; um pianista que, por vezes, encara a plateia com ar de cansaço. Situadas no espaço asséptico de um quarto de hotel, com decoração kitsch em tons de azul, são figuras um tanto patéticas e solitárias, que parecem viver cada qual em seu universo paralelo particular. Em nenhum momento fica exatamente clara qual a relação que os une ali. Quando cantam, no entanto, alcançam sentimentos mais vivos e desviam-se da banalidade cotidiana. Como sugere uma das canções do espetáculo, nesses momentos, “um milagre pode acontecer”.

Pensada como um teatro musical, ou uma ópera-teatro, a obra do diretor e músico suíço Christoph Marthaler trabalha com uma forma de recital denominada liederabend, que poderia ser traduzida como “noite das canções”. No repertório eclético, é possível encontrar músicas de artistas bastante díspares entre si, como Beethoven, The Jackson 5, Wagner, Satie e Schumann. Trata-se de um contraste que, por si só, já produz certa dimensão de comicidade nonsense ao trabalho. Fator que surge radicalizado, sobretudo, pelas ações inusitadas dos personagens em cena.

Se o cenário realista, tão típico das comédias de costume e do drama burguês, pode sugerir, à primeira vista, um leque de comportamentos/sentimentos facilmente identificáveis, é a estranheza e a aleatoriedade que predominam como modo de ser desses personagens. Tirar alfaces e espaguetes da bolsa para comer, pentear uma cabeça careca diante do espelho ou aparecer cantando debaixo de uma cama king size são algumas dessas ações que fazem do humor o afeto dominante do espetáculo.

Em algumas passagens, as falas e letras das músicas parecem sugerir camadas de leitura que colaboram para dar breves pistas, nunca conclusivas, a respeito da subjetividade dessas figuras. Por exemplo, quando a misteriosa senhora de cabelos vermelhos comenta algo sobre os olhares que atraía quando jovem; ou quando o marido diz da sua dificuldade em demonstrar amor. Aliás, um dos contrastes centrais de King Size é justamente aquele protagonizado pelo romantismo na vida do casal: enquanto cantam, muitas vezes anseiam e idealizam a presença da figura amada e o sentimento amoroso; fora dessa redoma onírica, na relação direta um com o outro, o que prevalece é a indiferença: chegam a espantar-se quando, por casualidade, alguma parte dos seus corpos se encosta.

É curioso que os momentos de maior entusiasmo dessa dupla sejam justamente aqueles nos quais ela se direciona frontalmente para a plateia. Com trajes de gala e partitura na mão, parecem deslocar-se da esfera privada para a pública: ao posicionarem-se diante do espectador, esboçam uma estranha solenidade. A formalidade, no entanto, é logo contrastada por coreografias bizarras e pequenos rompantes de euforia, que projetam à obra um lugar de deboche pueril, ao estilo do gênero pastelão.

Para além do sentimento reconfortante de passar 90 minutos ao som de melodias agradáveis – como se estivéssemos nós mesmos, os espectadores, deitados em uma espaçosa e macia cama king size – o aspecto que parece singularizar a obra de Marthaler é justamente a liberdade criativa do diretor para operar em cena o avesso da familiaridade, a partir de referências extremamente familiares. Não há nenhuma amarra às convenções comportamentais e tampouco a uma construção linear de sentido – o que costuma ser a lógica predominante tanto no caso dos musicais como nas comédias de costume. Sem compreender muito bem por onde caminham aqueles personagens, nos entregamos à sorte de suas ações banais – como trocar de roupa e dormir – a todo momento contrastadas por suas excentricidades, assim como à suavidade dos seus timbres, atravessados pelos acordes do piano em cena. É nesse terreno de alteridade sutil com o cotidiano que o espetáculo demonstra vigor e desvia-se dos clichês do gênero.

No entanto, ao mesmo tempo, quando deslocamos sua presença do recorte fechado e específico da caixa cênica para o contexto mais amplo de um festival de teatro que ocorre no Brasil deste início de 2018, surge também certa sensação de anacronismo, como se aquela estética e aquele humor tão caracteristicamente europeus destoassem de algum modo da urgência em voltar-se para outras questões e afetos, mais conectados às transformações que atravessam o país atualmente. Talvez a pergunta mais ampla a ser feita, não somente em diálogo com King Size, mas com a Mostra como um todo, diz respeito ao lugar da arte em períodos de crise. Em que medida, afinal, é necessário e/ou desejável fazer dela um espaço de intensa porosidade às problematizações do presente? Em que medida é legítimo que ela funcione, por outro lado, como zona de atalho – e por que não dizer, de autonomia – em relação aos contextos que a atravessam? Mais do que responder a essas perguntas, fica aqui o convite para que elas nos acompanhem no decorrer do festival. Independentemente das conclusões, parece fato que os enquadramentos críticos para além do recorte do palco são cada vez mais necessários.

 

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