Crítica escrita a partir do espetáculo Hamlet, por Diogo Spinelli (Farofa Crítica/RN)

Dentre os inúmeros olhares lançados sobre Hamlet, de William Shakespeare, existe aquele que vê a obra como um tratado sobre a representação teatral. Apesar de essa perspectiva ser evidenciada com mais ênfase em passagens como aquela na qual o príncipe da Dinamarca instrui os atores recém-chegados à corte de Elsinore sobre como devem ou não representar, a obra em sua integralidade pode ser lida a partir desse ponto de vista. Hamlet representa a própria loucura ou está louco de verdade?

Por sua vez, em seu Hamlet, o diretor Boris Nikitin e o performer Julian Meding radicalizam a discussão shakespeariana acerca da representação ao colocar em xeque o próprio teatro e o ato de representar. Em cena, a figura titubeante e com voz levemente embriagada de Julian nos informa: “isto não é uma peça”, “Isto não é um show”, “Isto não é uma performance”, “Isto não é a realidade”, “Isto não é a vida”. A recusa por uma classificação prévia revela na obra a proposição para que se estabeleça um deslocamento de percepção por parte dos espectadores. Ao mesmo tempo, demarca também uma inadequação frente às categorizações existentes.

A figura de Julian também ocupa uma zona indefinida. Ele nos informa que não vemos um personagem, mas que tampouco vemos ele mesmo: temos acesso somente àquilo que Julian define como sendo seu espectro. Desse modo, a obra tensiona as relações entre o que poderia ser lido como uma possível cena autobiográfica e a completa ficção. Se temos acesso a vídeos que supomos pertencer ao acervo pessoal de Julian e ouvimos trechos de acontecimentos que imaginamos pertencer a passagens de sua biografia, em nenhum momento temos a certeza ou a convicção de que esses materiais são documentos ou dados reais da vida de Julian.

Assim como Hamlet usa a seu favor o fato de ser tomado como louco para seguir com seus planos na peça de Shakespeare, Meding e Nikitin jogam constantemente com as expectativas que temos sobre a obra nesse campo obscuro entre representação e realidade para estabelecer uma atmosfera de estranhamento permanente sobre o que assistimos.

Esse estranhamento permeia a obra como um todo, e é reforçado por uma permanente e tensa sensação de desequilíbrio e imprevisibilidade – como se Hamlet escapasse o tempo inteiro do que estaria dentro de uma esfera de normalidade. Julian movimenta-se de maneira incessante, como se buscasse continuamente seu próprio eixo sem conseguir permanecer parado nele. Por vezes parece cativar-nos com frases irônicas, para logo depois retornar a um mesmo registro vocal que revela certa apatia. Relatos de lembranças são interrompidos por canções que, por sua vez, são também interrompidas. Um quarteto de música barroca soma-se aos arranjos de sons eletrônicos. Imagens em vídeo de uma festa infantil sobrepõem-se à imagem projetada de Julian na tela que ocupa o fundo do palco.

Em meio a essa cena anárquica, alusões à obra shakespeariana alinhavam a fragmentada dramaturgia, aparecendo ora de maneira mais evidente, ora de maneira mais ambígua. Os cantos de Julian remetem diretamente aos de Ofélia, na cena em que esta confronta Gertrudes e Cláudio após a morte de Polônio. Ofélia é evocada outra vez por meio da imagem de seu afogamento, suscitada pela letra da última canção da obra. Julian cita a morte recente de seu pai, estabelecendo um paralelo entre sua figura e a de Hamlet. A oposição filosófica entre o ser ou não ser aparece reescrita na metáfora de atirar uma pedra contra a janela ou contra si mesmo. Nessa sucessão de fragmentos que nos desestabilizam tanto dramatúrgica quanto cenicamente, prevalece por toda a obra certa atmosfera de loucura – e este talvez seja o ponto central do Hamlet de Nikitin e Meding.

Para além da discussão sobre a representação e de citações como as elencadas anteriormente, a obra vincula-se à peça shakespeariana no que diz respeito à inadequação social que une Hamlet a Julian. Hamlet é um outsider. Julian (ou seu espectro) é um outsider. A obra é outsider.

Em um dos raros momentos de aparente lucidez em meio ao caos estabelecido, Julian dirige-se à plateia e, de maneira quase didática, explicita a visão da obra acerca da loucura em Hamlet. Segundo essa perspectiva, o príncipe ser dado como louco é resultado de suas tentativas de denúncia contra a ordem social estabelecida na Dinamarca após a morte de seu pai. Seja em Shakespeare, seja agora, para manter-se hegemônico e estável, o sistema vigente patologiza aqueles que fogem à norma e que possuem a possibilidade de operar mudanças sociais. A partir desse diagnóstico de anormalidade/anormatividade, a alternativa que sobra à Hamlet/Julian é fazer uso de sua suposta loucura/inadequação para, por meio dela, alcançar seus objetivos de mobilização social.

Nesse sentido, o Hamlet de Nikitin e Meding adquire um forte caráter político, ao constituir-se uma obra que se vale de sua própria estranheza como instrumento de revolução.

*[1] Fala do personagem Polônio, na Cena II do Ato II de Hamlet, de William Shakespeare. Fonte: Hamlet e Macbeth. Tradução de Anna Amélia de Queiroz. Editora Nova Fronteira, 1995.

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