Crítica escrita a partir do espetáculo King Size, por Renan Ji (Questão de Crítica/RJ)
Christoph Marthaler, diretor do espetáculo King Size, não tem medo dos papéis de bala: coloridos, sortidos e barulhentos, encerrando um doce prêmio. De certa forma, pode-se dizer que a peça pressupõe e incentiva um prazer indulgente: aceita o bombom que apascenta os sentidos no meio da sala de teatro, por ser ele análogo à experiência de “drops” musicais que parecem rechear a dramaturgia de Malte Ubenauf. Açúcar para o corpo, embalo para os ouvidos. Porém, os “drops” não são o empacotamento de pérolas musicais padronizadas. Ao contrário, o espetáculo de Marthaler conta com uma seleção de músicas que vai do lírico pastoral ao soul pop. Há, no entanto, diante dessa seleção que parece cobrir um longo espectro do gosto musical, o prazer de relaxar como numa cama king size: o teatro vem com sabor, com riso leve, trazendo ao espectador a emoção da melodia sem a profundeza intelectual da harmonia.
A cenografia colorida se assemelha a um confeito de bolo e o quarto em que se passa toda a ação, cheio de armários e saídas estratégicas, favorece melodramas e quiproquós. Porém, em que pese ser um musical cômico, a seleção de canções e a estrutura narrativa estão longe de reproduzir a lógica de produto do teatro cômico e musical convencional. Na verdade, a dramaturgia de King Size remete à iconicidade dos videoclipes: investe-se muito mais na criação de quadros do que em histórias, favorecendo um enquadramento que estabelece tensões entre música e gesto, erudito e popular, sério e cômico. Importa aqui o cruzamento imediato de determinados movimentos e intervenções gestuais com a matéria da canção. De resto, as operações mais propriamente cênicas e narrativas reforçam somente uma circularidade rítmica, ou ainda criam breves transições filosóficas entre uma música e outra.
As palavras acima podem sugerir que se trata de uma dramaturgia fragmentada e complexa. Porém, não só a comicidade ingênua de King Size desfaz qualquer sisudez estética e cerebral, como também a passagem de uma música a outra se assemelha menos a um mosaico vanguardista de sentidos do que a uma passagem pelo dial do rádio. Em King Size, a música não tem partitura: os atores-cantores ridicularizam os livretos que os acompanham; um apoio de partitura aparece vazio o tempo todo na cena. Um apoio que nunca encontrou uma nota musical, filosofa um dos personagens. Assim, percebe-se que a música que Christoph Marthaler busca levar ao palco não é a de récita ou a experimental: é aquela que cantamos com o fone nos ouvidos, embalando afazeres, ou simplesmente a que cantamos de olhos fechados.
Para esse tipo de música, importa muito pouco a camada verbal do que se canta. Trata-se da capacidade de cantar uma canção em qualquer língua, mimetizando a língua estrangeira ou criando falsas pronúncias e trocadilhos em língua nativa. Uma sensibilidade que “troca de biquíni sem parar”: ou seja, uma música que nos leva muito mais pela voz e pela melodia, despertando afetos e misturando sentidos. A música de King Size, independentemente da proveniência nacional e do seu lugar na tradição cultural, é aquela que embala casamentos, relembra amigos e sempre parte de uma voz que é bela, seja pelo timbre que emite, seja pelo afeto que a acomete e suscita no ouvinte.
Enfim, o fato de que a peça se passa num quarto com cama king size não nos mostra outra coisa: a música que temos mais próxima de nossas vidas pode não ser a que apreciamos em espaço público, ou a que define nossas afiliações culturais e intelectuais; é aquela que surge no chuveiro, nos devaneios cotidianos, acompanhada de passos de dança que nunca mostraremos para ninguém. Cantar é desnudar-se diante da vida e vestir-se com a voz que se tem, diz um samba de Teresa Cristina e do Grupo Semente. Samba que já cantei para vastas plateias imaginárias.