Crítica escrita a partir do espetáculo País Clandestino, por Michele Rolim (AGORA Crítica
Teatral/RS)
País Clandestino, a última estreia na MITsp 2018, perde a chance de discutir temas como colonialismo e
identidade e acaba levando ao palco uma criação que privilegia o discurso normativo.
A montagem coloca em cena os artistas Florencia Lindner (Uruguai), Lucía Miranda (Espanha), Pedro
Granato (Brasil), Mäelle Poésy (França) e Jorge Eiro (Argentina), todos da mesma geração, entre 30 e 35 anos. Eles
se conheceram em 2014 durante uma residência artística no Directors Lab, do Lincoln Center Theater, em Nova
York, um dos principais complexos de artes cênicas do mundo, quando formaram o grupo Les Fives Pays.
O que poderia ser um encontro entre diferentes identidades apresentando díspares olhares sobre a situação
atual de cada país acabou reproduzindo um discurso homogêneo. Os corpos que estão em cena são de classe média,
branca, cisgênero, com acesso à cultura e educação e que se identifica com as premissas políticas da esquerda (me
incluo nessa descrição). Todos ocupam lugares de privilégios, o que envolve a possibilidade de transitarem por
diferentes locais e países, conhecerem diversas culturas, falarem várias línguas. Em outras palavras, permite
viverem o benefício da globalização. Tanto que, para criar essa montagem, tiveram a possibilidade de se encontrar
em uma cidade em que nenhum dos participantes nasceu ou reside. Além disso, para a criação da obra foram
utilizados artifícios tecnológicos como WhatsApp, e-mails e reuniões via Skype.
No entanto, ter privilégios não é a questão (ou pelo menos ainda está longe de ser uma questão a ser
solucionada). A questão é como esses artistas utilizam esses lugares de privilégio e acesso para configurar um
discurso que produza tensões na norma vigente e que possa vir a mudar estruturas sociais.
Os artistas trazem depoimentos pessoais que expressam lembranças familiares, preconceitos acerca de seus
respectivos países e fatos históricos. No entanto, por conta do enfoque dado, o discurso autorreferencial parece
estar à serviço de um exibicionismo, distante de uma fala que possa reverberar em outras esferas sociais e
políticas.
O cerne do espetáculo é o encontro de pessoas de nacionalidades diferentes falando de seu lugar de
enunciação, mas o quanto existe realmente de diversidade de pontos de vista e de realidades? Ambas são muito
parecidas. Ainda que exista um abismo entre as condições de vida de um país latino-americano e de um país
europeu, esse abismo só é vivenciado por uma classe desfavorecida, o que não é o caso. Quem tem dinheiro
também pode desfrutar de uma vida, digamos, “europeia”.
A pergunta que se coloca é: em um contexto mundial no qual vemos emergir novos fascismos,
conservadorismo, e a retomada de uma extrema direita, a quem esse discurso homogêneo serve?
Precisamos neste momento mais do que apenas expor fatos históricos, autodocumentais e pixar cartazes
com frases de “Fora Temer”. Precisamos começar reconhecendo premissas básicas: trabalhar no que se gosta não é
um ato libertário, superar o medo viajando não é ter coragem – são questões de privilégio. A discussão da peça está
focada em um recorte especifico de classe e raça e esquece a perspectiva ampla do nós.
Ainda que a forma do espetáculo traga questões do teatro contemporâneo, como o borramento das
fronteiras entre o real e a ficção, a interação entre público e artistas, o uso de diversos idiomas e projeções
audiovisuais, ainda assim é insuficiente para propor um encontro que produza fricções e não afirme privilégios.
Se a classe média branca, detentora de um lugar de poder, continuar debatendo pautas da esquerda
somente entre si, acreditando que isso significa realizar um ato revolucionário, continuaremos onde estamos e
deixaremos que a direita avance. Quando saíremos de fato da bolha que nos protege?