Crítica escrita a partir do espetáculo sal., por Laís Machado (Plataforma Araká/BA)

Para um ser afrodiaspórico, compreender a própria história passa pelo entendimento da diáspora em si, e vice-versa. Tornando tênue a linha que separa o indivíduo do coletivo. Tornando o autobiográfico expansivo, dialógico e historiográfico, ao invés de ensimesmado. A diáspora africana é o processo mais doloroso e cruel na história da humanidade, pelo qual ninguém ainda se responsabilizou devidamente. sal. trata desta ferida.

Selina Thompson, ao permitir-se experienciar a travessia oceânica, busca rastros de seus ancestrais em outros territórios. Ao compartilhar com o público os atravessamentos vividos em seu corpo, reitera a potência das narrativas propostas por aqueles a quem sempre foi atribuído o lugar do Outro.

Ao entrarmos na sala onde será realizada a apresentação, encontramos uma mulher negra, sozinha no palco, observando todos ao mesmo tempo em que é observada. Ela está calma, na frente de um triângulo que além de representar a sua busca, geograficamente (Europa, África e Caribe), também é o símbolo alquímico da transformação total. Estamos diante de alguém consciente da própria capacidade transmutadora.

Neste espetáculo, acompanhamos a narração da viagem realizada por Selina Thompson (e uma parceira neste projeto) em um navio cargueiro, por uma das rotas utilizadas durante o tráfico de africanos para o trabalho escravo. Fica evidente tratar-se não só de uma busca pelo preenchimento das lacunas presentes na timeline de sua própria história, mas uma tentativa de experimentar a sensação de pertencimento negada aos corpos afrodiaspóricos.

Selina também toca nos processos hierárquicos e estruturais da sabotagem dirigida aos sujeitos negros, representados neste espetáculo pela figura do comandante, a quem desconfortavelmente ela deve chamar de Master, e pela tripulação do navio.

sal. é um espetáculo bastante verborrágico, mas nada mais condizente com o contexto no qual ele está inserido. É importante sempre lembrar que durante todo o processo escravocrata, a boca, que simboliza discurso e emancipação, sempre foi cuidadosamente controlada pelo colonizador, como uma tentativa, durante muito tempo bem-sucedida, de não reconhecimento do saber do Outro. Neste espaço, delineado por Thompson, ela tem poder. Selina está no palco. E como ela mesma nos diz, “o tempo se acumula” e há muito a ser dito.

Após a passagem dos negros escravizados pelas “Portas do Não-Retorno”, dispostas em alguns pontos da costa do continente africano, muitas pistas que remontariam à história se perderam. Mulheres e homens foram obrigados a renunciarem suas identidades, seu pertencimento e renascem em pleno oceano Atlântico. O mar se torna a mãe. A história da diáspora é cercada de sal. A grande pedra de sal que Selina escava, desmonta, tritura ao longo da apresentação explicita o processo violento, árduo, doloroso e transformador que é lembrar. Juntar os cacos, vestígios e dar a eles sentido.

Ao embarcar na travessia oceânica, Selina vê-se em situações muito semelhantes às de seus ancestrais, ao enxergar-se na base da estrutura hierárquica de poder, alvo do ódio acumulado em toda a cadeia desde o capitalismo, passando pelo comandante e outros elos menos privilegiados, até chegar nela mesma. Ver-se trancafiada, diante do pânico crescente dos países europeus em relação a refugiados. Ver-se no porão, no útero, no túmulo. E enquanto macera o sal no palco, à marretadas, numa performance muito vigorosa, nos lembra: “O tempo passa e ainda estamos no mar”.

Selina nos leva à Porta do Não-Retorno, um destino bastante almejado por aqueles que se aventuram nesta missão de resgate, onde chora ao perceber que assim como não pertencia à Inglaterra, tampouco pertencia àquele lugar. Então, em uma atmosfera bastante lírica, propõe o seu próprio funeral e se atira ao mar. Onde toma consciência do fato de que pertence a lugar algum, portanto pertence a todos os lugares. Esta é a condição do sujeito afrodiaspórico.

Como nos disse uma intelectual brasileira, Beatriz Nascimento, somos corpos atlânticos.

Por fim, ao entregar para o público pedaços de sal, Thompson nos convida a lembrarmos, a curarmos, a permanecermos vivos. Entretanto, se quisermos atender a este convite, precisamos nos dirigir até ela e não o contrário. Esta busca está agora em nossas mãos.

Enquanto escrevo esta crítica, observo a minha pedra de sal e me lembro não só de Selina, mas do mar que me pariu.

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