Crítica de 100% São Paulo, por Beth Néspoli do Teatrojornal – Leituras de Cena/DocumentaCena.
O grupo suíço-alemão Rimini Protokoll, integrado pelos artistas Stefan Kaegi, HelgardHaug e Daniel Wetzel, atua numa vertente do teatro contemporâneo cujas criações se dão a partir de dispositivos que abrem um campo de desestabilização entre o ficcional e o real. Dispositivos, no panorama da cena, podem ser definidos como disparadores de sentido que se configuram como intervenções sobre uma geografia ou sobre outro dado qualquer de realidade socialmente compartilhado. Quando os participantes, atuadores ou receptores, percorrem os territórios dessas montagens, importa menos a distinção entre realidade e ficção, e mais o modo como tais categorias são postas em crise e as afetações que a experiência provoca.
Era essa a proposta, por exemplo, de Remote Control, criado por Stefan Kaegi, em parceria com Cristiane Zuan Esteves, em São Paulo, um audiotour no qual o receptor recebia instruções para percorrer uma determinada trilha no espaço urbano. A cidade, sua geografia e seus fluxos eram colocados no foco do espectador que, com o olhar já alterado pela certeza de estar participando de um ato teatral, era também estimulado por interferências no trajeto que sublinhavam elementos na paisagem saturada.
Proposição similar constituiu o espetáculo Bom Retiro, 958 metros, do Teatro da Vertigem, que tem no título o nome do bairro e a dimensão do percurso realizado pelas ruas dele e também por dois espaços fechados, um centro de compras importante na economia local, no início da trajetória, e um teatro em estado de abandono, na reta final. Há semelhanças entre essas duas criações no que diz respeito ao interesse em investigar a cidade e os modos de agir e pensar das pessoas que nela habitam, o que em parte explica o fato do Rimini Protokoll integrar a programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, que tem como idealizador Antônio Araújo, também diretor artístico do Vertigem.
Mas, se há pontos de conexão, há distâncias, e uma delas diz respeito à maior intensidade de investimento na elaboração da camada ficcional que caracteriza o modo de trabalho do grupo brasileiro. Não se trata de um juízo de valor, ao menos a priori é só uma diferença, porém o baixo investimento de intervenção poética sobre o recorte do real é uma das questões que merece análise no espetáculo 100% São Paulo, na versão criada especialmente para a 3ª edição da MITsp.
Tomar como ponto de partida dados estatísticos e desvelar as vozes que lhe deram origem, dar corpo às pessoas ocultas nos números e porcentagens para transformar abstração e virtualidade em presença e encontro são ideias na gênese do projeto 100% City, criado em 2008 e já realizado em 28 cidades do mundo. Idealmente pode ser um bom dispositivo, mas a apresentação no âmbito da MITsp realizada no Teatro Municipal provocou questionamentos quanto à potência de sua concretização.
Em São Paulo, como nas demais localidades em que o espetáculo foi criado, foram convocados cem habitantes para participar da proposição com o intuito evidente de que cada um pudesse representar 1% de algum dado estatístico. A única exigência adotada no processo de seleção foi que se mantivesse a mesma proporcionalidade divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) nas seguintes categorias: idade, sexo, local de residência, estado civil e cor.
À primeira vista o grupo parece ter apostado nesse critério de amostragem como gatilho garantidor da aleatoriedade do processo e, ao mesmo tempo, de diversidade de representação aos 11 milhões, 225 mil e 744 habitantes da metrópole. Reunir pessoas de diferentes vivências socioculturais a partir de uma seleção aberta ao acaso é risco que pode ser produtivo em arte. Mas o trabalho realizado, desde o processo de seleção até o que foi apresentado no palco do Theatro Municipal de São Paulo, autoriza a perguntar se a multiplicidade de facetas era verdadeiramente desejo, e investimento, dos criadores na construção do mosaico.
A seleção dos moradores, conforme informado no material divulgado pelo grupo, demandou três meses e foi realizada da seguinte forma: um primeiro participante foi escolhido e, a partir daí, teve 24 horas para indicar outro, e esse a outro, e assim sucessivamente, tendo como orientação única o enquadramento na proporcionalidade das cinco categorias citadas. Ou seja, a seleção se deu por redes de relacionamento.
Talvez em 2008, quando o primeiro espetáculo do projeto se concretizou, em Berlim, ainda fosse possível associar rede e diversidade, porém atualmente já se sabe que elas se formam por critérios de afinidades e rechaçam dissonâncias. No mundo virtual os semelhantes se encontram em pontos distantes da geografia. Presenciais ou virtuais, com seus nós e desvios de fluxos, não são modos de vinculação necessariamente democráticos, ao contrário, tendem a agregar membros que compartilham, por exemplo, similares graus de adesão ou recusa aos discursos (de poder) midiáticos e espetaculares, e a fechar espaços para a individuação e para qualquer interlocução crítica que represente ponto fora da curva.
O processo de seleção adotado reduz o grau de aleatoriedade e tende a aplainar diferenças, o que explica em parte a apreensão de homogeneidade desde as apresentações individuais na abertura do espetáculo. Salvo engano, não havia um participante sequer situado abaixo da linha de pobreza e nenhum das classes A e B. Ninguém com cargo de comando nas instâncias do poder. Em um texto assinado pelos criadores, 100% São Paulo é assim definido: “um encontro que representa uma cidade” ou ainda como “uma entidade com muitas faces”.
Contraditoriamente, para além da seleção, também o modo de organização do dispositivo cênico torna-se forte obstáculo à presença de diferenças significativas seja qual for o critério, desde estrato social até visão de mundo. Agilidade física é exigência para que se formem e se desmanchem agrupamentos em diferentes áreas do palco em resposta às perguntas que ora pedem decisão entre sim e não, tais como “quem tem um animal de estimação?”; “quem come carne”; “quem já fez um ebó”; ora oferecem mais possibilidades, por exemplo, “como você atinge um estado alterado de consciência?”, que neste caso exige o levantamento de cartazes de cores distintas que correspondem a respostas como álcool, maconha ou orações.
O mecanismo em si, que exige corpos dóceis, elimina a possibilidade de presença do ativismo mais radical. A movimentação requerida e o modus operandi baseado predominantemente em reação a comandos de voz ou estímulos visuais (por exemplo, quando é projetado um mapa gigante da cidade, com as regiões norte, sul, centro, leste e oeste demarcadas por diferentes cores, os corpos devem se posicionar estrategicamente no palco de modo a terem suas imagens sobrepostas de acordo com as áreas que habitam, criando assim algo como ilustrações vivas, uma tônica do espetáculo) dificultariam a participação de pessoas com limitações físicas, desde visuais e auditivas às de locomoção ou até mesmo mentais.
Parte relevante do discurso de difusão de 100% São Paulo gira em torno das múltiplas possibilidades de afetar por meio da ação de dar corpo vivo às estatísticas. Uma arte na qual o ponto de partida se funda na potência da presença pode ignorar a articulação inevitável entre lugares sociais, condição dos corpos e modos de pensar?Atingir extremos é algo que o mecanismo do espetáculo parece pronto a evitar, ainda que não o recuse de modo explícito. Mediano, por definição dicionarizada, é o que está no meio, ou entre dois extremos, intermediário, médio, que não é bom nem mau, medíocre. Deus vomitará os mornos, profetiza o livro do Apocalipse, 3-16.
É verdade que no texto de apresentação os criadores, por meio de perguntas como “quem está faltando?” ou “quem as estatísticas deixaram de rastrear?”, apontam como objetivo estimular na atividade receptiva a abertura desses lugares de falta. Se por um lado a cena contemporânea passou a valorizar o papel de coautoria da recepção, por outro, já se vislumbra o risco de transferência absoluta da responsabilidade de problematização para os espectadores. Alguma fissura desestabilizadora tem de existir na poética para que a recepção hesite, porém o que se percebe no palco, nessa montagem, é mais pavimentação do que escavação.
Não cabe ao crítico cobrar o que não foi proposto, mas a definição do Rimini para a proposição – “uma impossível entidade de muitas faces reunida num sempre mutante álbum de fotografias” – anuncia uma multiplicidade que não está contemplada. Tomemos a segunda parte da afirmação: fotografias capturam e imobilizam imagens que podem ser postas novamente em movimento por meio de contextualizações e atualizadas ou problematizadas pela observação crítica. No mecanismo proposto pelos criadores de 100% São Paulo, cada foto é posta em observação apenas num átimo, alguns brevíssimos segundos. A velocidade com que as páginas desse álbum são trocadas é obstáculo ao objetivo do ‘encontro’ anunciado. Como percorrer a distância que separa o evento, pura atitude e sensação, do acontecimento convivial capaz de moldar substância e alterar consciência?
Sempre se pode argumentar que as imagens não devem ser lidas isoladamente, o importante seria construir relações entre elas, e caberia ao receptor tal trabalho. Mas a aceleração é obstáculo a possíveis articulações. A mesma pessoa que havia se reunido ao grupo dos que frequentam uma Igreja depois estava entre os que afirmavam não acreditar na existência de Deus. Foi isso mesmo? Houve engano? Se ocorreu foi da parte da observação do espectador ou do participante que errou o comando? Os espaços “entre” indagações e respostas, se existem, estão diluídos na saturação e na ligeireza que tendem a imprimir irrelevância a tudo.
Ressalte-se, não há em cena o espaço/tempo da hesitação. A cada comando, todos devem buscar os seus lugares. E rapidamente sair deles para ilustrar outro gráfico. Nas poucas variações, por exemplo, quando as pessoas devem demonstrar com movimentos suas atividades em diferentes horas do dia, o número excessivo de participantes exprimindo-se com pouca ou nenhuma elaboração – as ações miméticas mais toscas como escovar dentes, ver TV, dormir e fazer sexo – enche o palco de movimentação frenética, confusa e inexpressiva.
Na cena contemporânea, e em especial no teatro documentário, linha de criação que o grupo tangencia, muitas vezes o acontecimento mais intenso se dá num tempo anterior ao compartilhamento com o receptor: o processo é mais importante que o resultado. Nesse caso, a reunião dos cem selecionados se deu durante seis dias apenas, incluindo aí o tempo necessário para compreensão e treinamento dos comandos. Perguntas tais como, “quem quer que os grandes anúncios em outdoor voltem para São Paulo” ou “quem é a favor das ciclovias” parecem ter sido originadas na discussão entre os participantes, mas não transcendem o que poderia ser definido de “cor local”. Impossível ignorar o tempo e o investimento na troca de ideias e afetos necessários para que a simples junção de pessoas se transforme em encontro.
Um procedimento voltado para provocar atrito ou possíveis articulações pode ser detectado na ordenação de algumas indagações como na seguinte sequência: “quem come carne?”; “quem estudou em escola particular?”; “quem já viajou para o exterior?”; “quem é a favor da bolsa família?” Porém, a não valorização dos tempos de exposição das respostas dificulta a construção de relações e tem como efeito diluir nelas a carga de realidade.
Na abertura do espetáculo cada um dos cem participantes se apresenta a si mesmo. São intervenções igualmente rápidas, mas ainda assim talvez seja a parte em que a proposta de dar corpo e pulsação aos números alcance sua maior potência. Talvez isso ocorra porque naquela fração mínima de tempo a fala é simultaneamente livre e preparada. Sem terem de se movimentar em resposta ao comando de um mecanismo de escolha e cientes da importância daquela síntese autodefinidora, as pessoas criam pequenas dramaturgias, mais ou menos elaboradas, ora em chave crítica, ora lírica, ora jocosa.
O mecanismo cênico não ignora a inevitável ficção que será construída com mais ou menos desenvoltura e eficácia expressiva, tanto que a imagem de quem está em foco é projetada num telão. Temos assim o ‘corpo real’ do participante, que é um cidadão comum, e a busca de uma representação de si mesmo. Mas mesmo aí o pouco investimento do grupo no estímulo à elaboração de um recorte significativo – que neste caso teria de ter se dado no processo de criação – faz com que sejam raras as centelhas que escapam do fogo brando do senso comum.
Não atingir a potência desejada é risco intrínseco à arte. O fracasso do experimento de quem aspirou a uma poética de alta densidade crítica é problema virtuoso, e não pecado. O que provoca intensificação do questionamento sobre 100% São Paulo é o fato de o mesmo mecanismo ter sido aplicado em 28 cidades do mundo, com sutis alterações, a julgar pelas imagens e material divulgado.
Na década de 1990 foi tema de discussão o surgimento dos chamados “espetáculo para festivais”. À época, o termo fazia referência a criações que tinham em comum a adoção de procedimentos como ausência de palavras e exploração de efeitos visuais por meio da tecnologia de projeções ou de linguagem feérica e demandavam vigor físico, muitos deles feitos para serem apresentados a céu aberto. Pastiches de poéticas potentes em sua origem, como as criações do grupo catalão Fura dels Baus ou do argentino Fuerza Bruta passaram a circular por diversos países.
O atrativo daquelas formalizações estava na capacidade de elas simultaneamente atingirem público amplo e de permitirem o enquadramento estético, à sua época, no escopo de programação de festivais internacionais, em sua busca legítima de escapar da cena já fixada na tradição. Independentemente das questões e objetivos envolvidos na gênese e circulação de 100% São Paulo, a resultante talvez tenha como principal efeito positivo disparar um alerta sobre a possibilidade de surgimento de uma linha de criação na cena contemporânea similar àquela voltada no passado para o ‘mercado’ de festivais. Desta vez construída sobre novos paradigmas da cena experimental já em risco de banalização como presença, encontro, acontecimento que, sem substância, se diluem em mero evento.