Após a segunda apresentação de Revolting Music – Inventário das canções de protesto que libertaram a África do Sul, a psicóloga e ativista Cida Bento, convidada a um diálogo transversal com a obra, falou sobre como a sua experiência de recepção lhe trouxe a memória de idas àquele país e dos pontos de contato entre lá e cá. “Em Durban, foi um divisor de águas quando houve a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial e a Xenofobia. O Brasil levou para a África do Sul a maior delegação e a gente pôde discutir muito, foi intenso. Nós costuramos as ações afirmativas no ensino superior que, a partir de 2001, passaram a pipocar no país; e desde então triplicou o número de jovens negros nas universidades”, disse Cida.
Em seguida, a pesquisadora pontuou as semelhanças entre as duas sociedades para abordar o problema no contexto brasileiro atual. “Temos em comum um lastro de subdesenvolvimento que vem do colonialismo e da nossa relação com a Europa. E o que a gente vem chamando de ‘a tragédia do nosso tempo’ no Brasil, que é a morte de jovens negros. Pelo Mapa da Violência de 2014, foram mortos 23 mil jovens negros. Enquanto decresceu a morte de jovens brancos, aumentou na mesma porcentagem a morte de jovens negros. E cresceu 54% a violência contra a mulher negra”. Para ela, uma das causas desse quadro é a onda reacionária: “O país tem sofrido uma reação às ações afirmativas em resposta à presença dos negros em locais onde não se encontravam”.
Apesar de celebrar o fato de, nos últimos 12 anos, as escolas brasileiras ensinarem histórica e cultura africanas, por lei, como “uma das maiores conquistas que o movimento negro teve”, Cida também falou da necessidade de enfrentar a questão da desigualdade racial como crucial à sociedade brasileira, ecoando ideias que haviam sido discutidas no debate entre os curadores dos Discursos sobre o Não Dito. “No Brasil, 53% da população é negra, entre pardos e pretos, mas se você circular aqui pelas redondezas [do Centro Cultural São Paulo], não vê 10%, estão na periferia. Se o Brasil quiser se encontrar enquanto país, tem que trazer essa população para todos os lugares. Temos pouco mais de 500 anos e quase 400 foram de escravidão negra. Se haver com essa história e com esse povo é a única chance que o país tem de encontrar o seu caminho”.
Cida ainda comentou que, durante a apresentação, recordou uma fala inconformada do sociólogo e historiador Clóvis Moura (1925-2003) sobre a dificuldade dele em entender como os negros da cidade de Salvador dançavam e cantavam tanto num contexto de desemprego e violência. Alguns anos depois, ele reveria essa posição reconhecendo a riqueza cultural expressada por meio da dança e da música e em tensionamento social na Bahia. “Lembrei disso ao ouvir o Neo [Muyanga] cantar”. “Sempre me perguntam por que os sul-africanos protestam se parecem tão felizes”, contou o artista, presente na plateia. “Realmente é uma grande festa, mas, de alguma forma, essa alegria não tira a agressividade, ela reforça. Então, numa situação em que haja algumas pessoas caminhando, é preciso apenar uma pedra ou uma bomba de gás da polícia para tudo virar violência. É parecido com o que você falou sobre Salvador” – comparou Neo, dirigindo-se a Cida -, “nossa alegria e nossa dor vivem juntas”.