“Há esta anedota: uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa”, contou a portuguesa Grada Kilomba num tom doce de voz que transmitia tanta tranquilidade quanto segurança na performance palestra “Descolonizando o Conhecimento”, apresentada durante a MITsp, no dia 6 de março, no Centro Cultural São Paulo. “Branquitude, como outras identidades no poder, permanece sem nome. É uma identidade que se coloca no centro de tudo, mas tal centralidade não é reconhecida como relevante, porque é apresentada como sinônimo de humano. (…) E acreditem em mim, não existe uma posição mais privilegiada do que ser apenas a norma e a normalidade”.
Escritora, performer e curadora no Teatro Maxim Gorki, em Berlim, Grada conta esta e outras histórias de mulheres negras como ela, num gesto de compartilhar com o público formas outras de pensar e produzir conhecimento que não a centrada tradicionalmente na perspectiva do homem branco europeu como “universal”. “Descolonizar o conhecimento significa criar novas configurações de conhecimento e de poder. Então, se minhas palavras parecem preocupadas demais em narrar posições e subjetividade como parte do discurso, vale a pena relembrar que a teoria não é universal nem neutra, mas sempre localizada em algum lugar e sempre escrita por alguém, e que este alguém tem uma história”, explicou.
Num jogo simples com a plateia, ela demonstra o silenciamento imposto pelo sistema racista: pediu aos espectadores que conversassem entre si por alguns minutos enquanto ela continuaria a palestra. A situação de falar e não ser ouvida que se estabeleceu então no teatro é análoga à condição de silenciamento de sujeitos na sociedade: não lhes é concedida a escuta. “Falar torna-se, então, praticamente impossível. Não é que nós não tenhamos falado, o fato é que nossas vozes têm sido constantemente silenciadas através de um sistema racista”, disse, citando frases-clichês de repressão da voz de pessoas negras e mulheres, como “Eu acho que você está exagerando…” ou “Eu acho que você é demasiado sensível…”
Para dar mais concretude e visualidade a tal silenciamento, a performer mostrou a imagem da Escrava Anastácia presa à Máscara de Flandres, objeto violento feito de metal, que prendia a língua e a mandíbula de escravizados. “Minha avó dizia que eu deveria sempre me lembrar dela. (…) A teoria da memória é, na realidade, uma teoria do esquecimento. Não se pode simplesmente esquecer e não se consegue evitar lembrar. A máscara não pode ser esquecida. Ela foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se tornou parte do projeto colonial europeu por mais de 300 anos. (…) Oficialmente, a máscara era usada pelos senhores brancos para evitar que africanos escravizados comessem cana-de-açúcar, cacau ou café, enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo”.
Um silenciamento e uma repressão que ela identifica ao lugar do colonialismo e da escravidão na sociedade atual: um “segredo” não enfrentado. E um aspecto fundamental da manutenção desse sistema racista, segundo ela, é a partilha excludente do conhecimento. “Qual conhecimento tem feito parte das agendas e currículos oficiais? E qual conhecimento não faz parte de tais currículos? A quem pertence este conhecimento? Quem é reconhecido/a como alguém que tem conhecimento? E quem não é? Quem pode ensinar conhecimento? Quem pode produzir conhecimento? Quem pode performá-lo? E quem não pode? O conceito de conhecimento não se resume a um simples estudo apolítico da verdade, mas é sim a reprodução de relações de poder raciais e de gênero, que definem não somente o que conta como verdadeiro, bem como em quem acreditar” e, portanto, “reflete os interesses políticos específicos de uma sociedade branca colonial e patriarcal”, disse.
Outra vez, Grada exemplificou, com frases já muito ouvidas, como essa exclusão do lugar de saber se dá: “Isso não é nada objetivo!. Você tem que ser neutra. Se você quiser se tornar uma acadêmica, não pode ser pessoal. A ciência é universal, não subjetiva”. “Tais comentários ilustram uma hierarquia colonial, pela qual pessoas negras e racializadas são demarcadas. Assim que começamos a falar e a proferir conhecimento, nossas vozes são silenciadas por tais comentários, que, na verdade, funcionam como máscaras metafóricas”, observou. “Quando eles falam, é científico; quando nós falamos, não é científico. Quando eles falam, é universal; quando nós falamos, é específico. Quando eles falam, é objetivo; quando nós falamos, é subjetivo. Quando eles falam, é neutro; quando nós falamos, é pessoal. Quando eles falam, é racional; quando nós falamos, é emocional. Quando eles falam, é imparcial; quando nós falamos, é parcial. Eles têm fatos, nós temos opiniões”, comparou.
Foto de Caio Campos.