Crítica do espetáculo 100% São Paulo, por Michele Rolim (Agora Crítica Teatral)
A peça 100% São Paulo se constitui em um bem-vindo paradoxo. A montagem do grupo suíço-alemão Rimini Protokoll (composto pelos artistas Helgard Haug, Stefan Kaegi e Daniel Wetzel) ao mesmo tempo em que se vale de recursos tecnológicos modernos, transformou palco e plateia do Teatro Municipal de São Paulo em uma ágora contemporânea, onde a população reconhece seu pertencimento ao coletivo, mas redescobre sua individualidade.
Em cena estavam cem não atores escolhidos para o projeto mediante critérios estatísticos de idade, sexo, local de residência, estado civil e cor, na tentativa de criar um conjunto representativo da capital de São Paulo. A convocação das pessoas não foi aleatória: cada escolhido tinha 24 horas para indicar outro, obedecendo à proporcionalidade verificada no Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
O espetáculo de 120 minutos funciona como uma lente de aumento aplicada à população paulistana, expondo sua opinião sobre questões políticas, morais e de comportamento. O jogo de representação, no sentido de o elenco se constituir em uma amostra da cidade (e da plateia), está lá. No início da peça, cada um desses não-atores se apresenta, elaborando em um minuto um pequeno drama pessoal, uma amenidade, uma piada, às vezes quase nada.
Depois, através de perguntas trocadas entre eles, revelam não só os dados estatísticos (como idade, sexo, cor etc.) como posições políticas e de comportamento. Neste momento, até pela reação da plateia se posicionando para um lado ou outro, parece que fomos transportados para o ambiente radicalizado e rasteiro das redes sociais. Mas a encenação se encarrega de desmascarar a vigilância social: nas experiências mais particulares, como assumir se foi vítima ou algoz em casos de estupro ou violência doméstica, o palco fica no escuro e os não atores respondem às perguntas acendendo ou apagando a luz, em anonimato. E as respostas surpreendem.
100% São Paulo também tem seu lado sutil ao colocar questões aparentemente de resposta imediata e previsível que escondem um cunho complexo: “Você mataria para defender a sua família?”; “Você gostaria de ser parecido com seus pais?” e “Você acha que estará morto daqui a dez anos?”. E há momentos de completa emoção como quando uma criança confessou que tinha medo de morrer “de tiro”.
Inicialmente estranhos, não atores e público se tornam íntimos. E uma possível hierarquia do palco sobre a plateia se extingue quando o elenco se aproxima da beira do palco e passa a questionar diretamente o público. Os espectadores tornam-se cúmplices do jogo. Há, portanto, um tensionamento e uma provocação do espectador o tempo inteiro. Ele se manifesta aplaudindo, gritando e até vaiando. Mas há também os momentos em que a discussão se transfere para o âmago de cada um, logrando uma dinâmica que nos joga do individual para o coletivo, do político para o íntimo. Isso sem se descuidar da parte estética, propondo soluções teatrais ótimas como a projeção e movimentação do palco em uma imagem circular projetada no fundo do espaço.
Ao utilizar não atores e assumir o que seria um tom confessional nos depoimentos, se questiona o quanto de ficção e de realidade está presente seja no palco, na vida cotidiana e até mesmo nos dados do IBGE. Os corpos que se movimentam em cena não são mais cem sujeitos estatísticos, e, sim, cem histórias de pessoas como nós, ao mesmo tempo que diferentes de nós. Cada um só se reconhece no coletivo quando se percebe singular. E só se afirma como indivíduo quando assume pertencer ao coletivo. O dispositivo cênico de 100% São Paulo, que já passou por diversas cidades do mundo revelando as particularidades de cada uma delas, cria um ambiente de convívio e discussão que transporta o teatro para outro lugar – ou devolve o teatro às suas origens? De toda forma, prova que se pode construir uma arte transformadora que envolva todas as esferas.