03/04/2015 | Luciana Romagnolli

Para debater as relações entre teatro e cinema, o professor Ricardo Fabbrini (USP) partiu da noção de teatro como campo ampliado e intersemiótico de convergência de linguagens, considerando que o teatro contemporâneo “pretende realizar o idela de convergência de linguagens já presente desde o romantismo com a obra de arte total, e retomado dos anos 1990 para cá, após o refluxo conservador dos anos 1980”. Segundo ele, o projeto moderno teve duas frentes, de um lado o embaralhamento das linguagens, de outro a ênfase nas especificidades. Com a estética relacional e a arte conceitual, o embaralhar entre arte e vida não é mais o projeto da obra de arte total ou de indiferenciar vida e arte, mas “inserir os signos pragmaticamente no cotidiano vivido, produzindo heterotopia”. Nos espaços laboratoriais, não mais o pensar de outra sociedade (a utopia), mas o “habitar de outros modos o mundo existente”.
No confronto dos signos corporais com os signos de luz, vem a questão de “como mobilizar no teatro a imagem eletrônica”, de modo que seja não ocasional nem reiterativa, mas a “incorporação da linguagem eletrônica à estrutura mesma da encenação”, produzindo “intersemiose no sentido forte do termo”. “Não efeitos espetaculares, como no cinema hollywoodiano”, mas “imagens que contenham fissuras, enigmas” (Baudrillard), opôs. Fabbrini então distinguiu dois riscos ao se trazer à cena imagens eletrônicas: reduzir o teatro a um meio de comunicação ou “recair na chave do fascínio, pela espetacularização”.
Fabbrini  colocou em questão o estatuto da imagem, tanto eletrônica quanto do corpo do ator em cena, e as relações que essas imagens podem gerar como percepção física ou elaboração mental. E opôs, à imagem simulacro no sentido baudrillardiano, um teatro da imagem como individuação, no sentido deleuziano, de um teatro que modifica sua forma e cessa a representação, de modo que a individuação seria a crítica à representação. “É possível nesse teatro expandido modular o tempo”, segundo o professor,  num feixe de temporalidades.
“No teatro-cinema pode se dar a a crítica às imagens, em busca de uma imagem crítica, o que está no centro do debate contemporâneo”, disse Fabbrini, citando o drama da percepção, de Hener Goebbels. Com isso, para ele, o teatro torna-se “lugar decisivo da imagem” na contemporaneidade. Citando o livro “La Beauté a Outrance, Reflexions sur l’Abus Esthétique” (“A Beleza em Excesso, Reflexões sobre o Abuso Estético”), de Jean Galard, tratou da “beleza difícil”, aquela que “devolve ao olho a possibilidade de ver”. E recordando Godard, provocou: “se as imagens tornarem-se clichês, como extrair de todos esses clichês justo uma imagem?”. Assim está posto o problema do espectador: na civilização das imagens, o que ainda “há para se ver numa imagem?”.
Tata Amaral
A cineasta Tata Amaral levou o debate para sua experiência com o filme Um Céu de Estrelas e a série Trago Comigo. Ela partiu da “Poética”, de Aristóteles, e da ideia de que “não cabe ao poeta dizer o que realmente aconteceu, mas o que poderia ter acontecido”, para traçar sua conexão com o teatro, compreendendo-o como “campo da representação” e da “rejeição do pirotecnismo”.
Tata recordou que a “linguagem clássica do cinema ocidental vez da relação espacial formal com o palco italiano”. “É como se constrói o espaço”, disse, destacando a relação de quarta-parede, “rompida nos anos 1960 com Godard, quando se passa a olhar para a câmera – o que o jornalismo já fazia”.
A cineasta contou que, na série, utilizou-se do teatro e do cinema, “peo comportamento da câmera e pelos recursos narrativos”. E a necessidade de se criar representações sobre a memória originou o recuso ao flashfoward da apresentaçãofutura da peça dentro da série para representar o passado.
Daniel Schenker
O crítico de teatro e de cinema Daniel Schenker escorou sua fala em dois pontos. Primeiro: “como o teatro torna-se dependente de tecnologias de que, em princípio, não dependeria; torna-se mais artificial, no sentido de falso; e afasta-se do entendimento de arte centrada no ator”. E segundo: “a contracena temporal entre passado e presente, na medida em que o teatro é vinculado ao aqui e agora, e o cinema, a princípio, é atrelado ao passado”.
Schenker pontuou que “as tecnologias redimensionam a noção de presença no teatro”, citando também  a obra de Heiner Goebbels, Stifters Dinge. Outro exemplo dado foi o espetáculo Os Cegos, do Ubu Theatre, do Canadá, no qual a existência de um ator presente ou não é uma questão em aberto durante a apresentação. “Suscitando a dúvida, talvez tenha conseguido furar a estrutura vinculada ao passado, do cinema, e trazer a experiência de presente”, comentou. Um terceiro exemplo seria “O que Você Vai Ver”, na qual “o espectador ouvia as vozes dos atores, mas não os via”, uma vez que eles estavam presentes no teatro mas fora do campo de visão da plateia. E ainda a peça “O Sacrifício de Andrei”, dirigida por Celina Sodré, que exibia cenas do filme de Tarkovski, congelando-as às vezes, e transformando os corpos dos atores em tela.
Para o crítico, “a interface teatro/ cinema vem interferindo no registro do ator no teatro”.
Debate
A mediadora Luciana Romagnolli comentou que muitas vezes o cinema pensa a interface com o teatro de uma perspectiva textocêntrica e de uma arte fechada na quarta parede do palco italiano, sob o estatuto da representação, sem considerar a crise do drama; e questionou se o cinema, marcado pelo “realismo congênito” (segundo André Bazin), poderia aproximar-se do instrumental do teatro contemporâneo como modo de se liberar do realismo para outras possibilidades. A cineasta Tata Amaral respondeu afirmando “a ditadura do entretenimento no cinema”, a seu ver, “sem que a gente faça muita coisa para mudar essa realidade”.
“(O cinema) é um grande veículo de ideologia e de conceitos utilizados hegemonicamente, e muitas vezes a gente está lidando com lutas simbólicas”, disse Tata, e citou seu filme Antônia, cujo propósito era “criar uma representação positiva do negro”. “A história dos negros no Brasil foi contada sob o ponto de vista de mercadores e senhores de escravo”, observou.
“De certa maneira, não estamos nos dedicando tanto à pesquisa, com exceção de novas gerações que estão trabalhando com a investigação e os limites através da negação de recursos financeiros. E, com isso, se criam novas propostas de temporalidade. O (nosso) foco é a disputa simbólica e a disputa de público. Sobra pouco para a linguagem desse ponto de vista, muito menos do que a gente gostaria”, diagnosticou a cineasta.
Daniel Schenker questionou por que seria necessário liberar qualquer coisa do realismo, já que este não necessariamente reprime a imaginação do espectador. A mediação esclareceu que liberar não significaria superar o realismo, mas ampliar outras possibilidades.
Fabbrini tomou a discussão sobre real por um viés da filosofia da arte, e comentou o fascínio com a imagem “por uma espécie de gozo pelo desaparecimento do real”. “É necessário usar esses meios com rasuras que impeçam esse fascínio da imagem”, argumentou, indagando “como utilizar as tecnologias sem ficar refém delas”.
O professor recorreu à volta da questão sobre a autonomia da arte “não como arte pela arte, mas como uma linguagem autônoma para antagonizar com o real”, o que seria um projeto político. “O problema é a arte ficar demais presa à realidade existente e que nela acabe por sucumbir. Algum distanciamento em relação à realiade é necessário para a reconfiguração dessa realidade”, disse.