08/03/2015 | Daniel Schenker

O diretor Andriy Zholdak parece querer abraçar o mundo em Woyzeck, encenação do texto de Georg Büchner. Esta impressão decorre da utilização assumidamente excessiva dos recursos da teatralidade e, ao mesmo tempo, de um aparente desejo de questionar – e extrapolar – os limites do próprio teatro.
Os atores falam e se movem em ritmo acelerado durante quase toda a apresentação, a trilha sonora transita da ópera ao pop, sons heterogêneos surgem sobrepostos e diversas imagens são projetadas concomitantemente. Imagens de guerras, de corpos metralhados, do caos urbano em cidades fálicas, do espaço sideral, de pinturas (com certo destaque para corpos abertos de animais), em cor ou em preto e branco.
Boa parte dessas imagens – como as da natureza e da guerra – não poderia ser concretizada no palco, dadas as dimensões espaciais reduzidas, dado que contrasta com as possibilidades “infinitas” do cinema, que pode fazer o espectador viajar ao outro lado do mundo em um segundo. Mas Zholdak não deixa de louvar a riqueza da limitação, a exemplo da passagem do menino passeando com um cachorro cósmico simbolizado por um ventilador (apesar desse sentido ser mais anunciado do que percebido pelo espectador), representativa do fato de os objetos no teatro poderem adquirir qualquer sentido para além do significado literal.
Se por um lado a encenação exibe imagens impossíveis de serem materializadas no palco, por outro traz diversas gravadas durante a apresentação, tanto referentes às cenas realizadas nos espaços envidraçados dispostos diante do público quanto às que acontecem no quarto por onde o espectador passa no momento da entrada – espaço que, no restante do tempo, permanece acessível ao olhar apenas por meio das imagens projetadas na tela. Ao exibir as imagens gravadas durante a apresentação, Andriy Zholdak talvez traga à tona um cinema do presente, rompendo, em alguma medida, com o caráter de arte do passado dessa manifestação calcada na projeção de cenas previamente registradas.
Diante de tantos estímulos lançados ao espectador, fica difícil escolher o que priorizar. Talvez as imagens projetadas na tela, por suas dimensões, se sobreponham, em certa medida, à cena teatral propriamente dita. Seja como for, a cena também evidencia concorrência, na medida em que Zholdak não tende a privilegiar um determinado foco. Ao invés disso, distribui os atores/personagens em ações simultâneas. É impossível apreender tudo o que se passa em cena e, nesse sentido, a montagem de Woyzeck coloca o espectador diante da escolha e, consequentemente, o confronta com a experiência da perda, algo que, apesar de mais realçado numa proposta como essa, acontece em qualquer trabalho.
O espetáculo se abre a variadas possibilidades de leitura, mas se trata de algo já sugerido no original. Afinal, Woyzeck, de Büchner, é uma obra inacabada, uma sucessão de cenas que pode, eventUalmente, ser disposta através de ordenação livre. Esta característica tende a estimular diretores no sentido da realização de leituras personalistas, a exemplo da montagem de Cibele Forjaz (intitulada Woyzeck, o Brasileiro), que, apresentada nos escombros do Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, transportava a ação para o ambiente de uma olaria.
Zholdak acentua ainda mais o caráter fragmentado do original ao optar por valorizar o corpo em detrimento da palavra. Trata-se de um espetáculo rascante, áspero, exasperante, que fala por meio dos violentos embates de corpos em agonia que transitam por espaços cada vez mais degradados de um predatório mundo futurista. Mas o meio externo não diz tudo sobre o Woyzeck de Büchner/Zholdak, assombrado por vozes demoníacas, pela solidão e pelo medo.