14/03/2015 | Beth Néspoli
Em se tratando de uma criação que vem de Moscou, a primeira cena do espetáculo Opus Nº 7 – a transformação de uma trabalhadora em cantora lírica – pode ser lida como síntese de um período privilegiado na história da humanidade, transcorrido nos anos seguintes à revolução bolchevique de 1917, quando a utopia de uma nova sociedade pareceu possível. Bastaria o empenho de mãos humanas dispostas ao trabalho criativo para alterar a matéria do mundo. Tal pensamento, e suas implicações, parece fundar a linguagem do diretor russo Dmitry Krymov, cenógrafo e artista gráfico cuja encenação se constitui como um embate dos atores com os objetos cênicos. Sua poética privilegia imagem e música – aspecto que facilita e intensifica a experiência de interação da plateia brasileira, liberada da leitura de legendas a maior parte do tempo. A técnica de animação de objetos faz tudo parecer possível sob as luzes da ribalta. Mas não é bem assim. Para além do espaço iluminado da cena há uma zona escura e invisível, mas não inativa. Dali também tudo pode vir.
Composta por oito atores – alguns com domínio de técnicas de acrobacia e outros virtuosos cantores de música erudita –, o espetáculo é dividido em dois atos bem marcados. No primeiro, o tema é a perseguição aos judeus na primeira metade do século XX e, no segundo, a tensa relação entre o compositor russo Dmitry Shostakovich (1906-1975) e o poder no regime soviético.
Na abertura, o público está acomodado diante do palco retangular, cuja área de atuação é demarcada por uma espécie de tapume ao fundo. O que parecia simples divisória servirá a um só tempo de suporte e objeto de múltiplos procedimentos e recursos criativos. Se em um momento os atores desenham figuras, no seguinte, recortadas do anteparo, elas ganham vida e solicitam diálogos corporais. A divisória servirá ainda de tela para projeções e funcionará como uma espécie de umbral para o passado, passagem para um território que nunca se revela inteiramente, mas literalmente lança objetos e fragmentos que pedem atenção.
Em todo o primeiro ato, os recursos técnicos provocam surpresas, porém, se a atmosfera é lúdica, por vezes leve e bem-humorada, a possibilidade do trágico paira constantemente. E se concretiza em alguns momentos, por exemplo, quando um jogo de futebol é interrompido por uma imagem projetada. Um policial caminha lentamente. Enquanto o seu uniforme vai se alternando entre diferentes “exércitos”, sua atitude permanece a mesma. Mudam os governos, a repressão permanece. O som sincopado de seus passos irá retornar, no segundo ato, nos pés da “pátria” representada por uma gigantesca boneca de pano, de imensos olhos bem abertos.
Vale talvez lembrar que, logo após o período inicial da implantação do comunismo soviético, a Alemanha era talvez o país mais acolhedor ao povo judaico. Fora o primeiro a aceitar o ingresso de judeus nas universidades e, em 1920, passou a permitir a compra de terras e imóveis. Desde essa aceitação até o Holocausto, na Alemanha. Da integração no período inicial da revolução comunista à política de expurgos de Stalin. Talvez aí a explicação para a oscilação entre luz e sombra no primeiro ato e ainda a repetição do comentário – “devem estar ocupados” – sobre a falta de notícias de parentes ao examinarem fotos antigas. Mas o carrinho de bebê cheio de sapatos que atravessa o portal vindo das sombras (citação dupla: ao filme O Encouraçado Potemkin, de Serguei Eisenstein, e ao extermínio de judeus nos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial) é apenas uma das imagens que não deixa dúvidas quanto ao destino daquelas pessoas.
Depois de um tecnicamente necessário intervalo de 30 minutos, o espectador encontra o espaço cênico completamente alterado. Aparentemente não há mais zona escura, tudo está fortemente iluminado para a entrada triunfal da já citada boneca de grandes tetas arrastando entre suas pernas um pequeno garoto, a quem protege e controla. A imagem remete ao compositor Shostakovich, que aprendeu a tocar piano aos 8 anos ensinado por sua mãe. A tensão entre artista e poder, liberdade artística e controle do Estado é a temática explorada em diferentes variantes no segundo ato deste espetáculo fascinante no modo como une elaboração técnica e liberdade criativa.
O que está em jogo é a derrocada do investimento realizado pelos revolucionários de primeira hora na criação de uma arte que fosse a um só tempo popular e sofisticada, capaz de apurar a sensibilidade, em vez de brutalizar por meio do simplismo que subestima o outro. Muitos foram os artistas que aderiram ao regime e apostaram na possibilidade dessa arte nova, como o encenador Meyerhold (1874-1940) e o poeta e dramaturgo Maiakovski (1893-1930), ambos trazidos à cena em Opus Nº 7, dois entre os muitos que foram assassinados na era Stálin, que teve início em 1927 e só terminou em 1953.
A permanente tensão entre o músico Shostakovich e o estado totalitário ganha linguagem física e musical. Além de coreografias nas quais ora corpos, ora pianos se friccionam em luta extrema, tal atrito também está presente no contraponto entre o discurso de adesão ouvido na voz gravada do compositor e as peças musicais desse artista que criou obras inovadoras, mas também cedeu aos cânones do realismo soviético depois do cancelamento da estreia da Sinfonia Nº 4, em 1936. Se a resistência leva à morte, a adesão torna amargo o sucesso. Para artistas e judeus, a liberdade parece nunca ser plena.