14/03/2015 | RUY FILHO
A informação inicial está já no próprio nome. Opus é o plural do latim obra e se destina, sobretudo, ao movimento operístico. Então o que vemos é, antes de ser somente teatro, também uma composição musical. Não por trazer a música em cena ou pelas aproximações nos contextos narrativos. A musicalidade de Opus Nº 7 está na opção de Dmitry Krymov por provocar um espetáculo estruturado pela pesquisa rítmica. Envolve, assim, intervalos, tempos, temas, sistemas cênicos diferentes, em duas partes ou movimentos. O ritmo provoca muitas vezes certa suspensão inclusive da narrativa e nos conduz a um estado de envolvimento muito particular e indecifrável de sensações. Algo parece não estar em ordem, mas está. Algo sugere faltar, o que também não é verdade. O espetáculo, em suas mais de duas horas de duração, subverte a cena e nos entrega em forma de teatro uma profunda e estranha experiência musical.
Não são temas fáceis. Entre os judeus massacrados na União Soviética, no primeiro movimento, e artistas assassinados e a censura ao compositor Dmitry Shostakovich pelo regime revolucionário, no segundo, a música percorre as entranhas de gerações de musicistas, instrumentistas e compositores subjugados e movimentos quase extintos. Krymov parece querer gritar em silêncio a morte da composição moderna, enquanto substitui a melodia pela presença estética teatralizada.
Ao provocar um deslocamento indecifrável rítmico no tempo das ações e das cenas, o espetáculo provoca sobre o espectador a perda pela compreensão racionalizada em exagero. É preciso olhar entre os intervalos, como se cada performance fosse uma partitura em si conflituosa e condenada a permanecer aprisionada em seu próprio vocabulário. Há a violência dos tempos sombrios e também a poesia das solidões mais íntimas. Se, no primeiro movimento, os atores-personagens da orquestra são sugestões, enquanto a música pouco se realiza, no segundo, Shostakovich, ainda menino, dialoga com a voz que sobrepõe os relatos já adultos de apelo ao desenvolvimento das linguagens experimentais. A música, portanto, sobrevive como ação e não mais sonoridade. E nela as instâncias de horror e política se confundem ao limite discursivo da teatralização pela sobrevivência.
Os instrumentos quase mudos, os músicos ausentes ou perdidos desenhados com baldes de tinta preta, a voz da cantora que pronuncia apenas a letra A, as mãos vermelhas, os jornais rasgados, os sapatos de crianças acumulados, o piano serrado, os vários pianos que se chocam violentamentamente são imagens de grande impacto e profunda beleza estética, ainda que dolorosas, tristes, e discursos radicais de contraposição à história russa.
Krymov consegue estabelecer uma ambiência cênica muito particular. Exagera nas escolhas, por bons motivos, e esvazia em outros de modo a quase abandonar o espectador. Torna, com isso, o assistir um movimento de recusa e aproximação, tanto quanto as partituras borradas nas quais se supriram notas ou instrumentos nos regimes totalitaristas. O espetáculo faz da narrativa simples em dois gestos a perspectiva profunda de profusões de imagens possíveis sobre os mesmos temas. Não se trata de repetições, porém. São ressignificações melódicas e coreográficas, sistemas de revisitações constantes dos signos empregados que dialogam com o excesso dos discursos impossíveis. Essa estruturação coreografada ou partiturizada retira a dimensão banal e configura uma performatividade aos atores muito particular. É nítida a rigidez de cada instante; contudo, muito ali parece ser original e ainda em estado bruto. Evidente escolha de Krymov por deixar transparecer a construção em sua face menos acabada, tanto quanto a materialidade dos elementos cênicos utilizados. Há uma precariedade programada, pode-se dizer, como que alertando sobre a impossibilidade de ir além das tentativas, quando se busca o mais primordial ao homem e ao artista: sobreviver.
Não é um espetáculo fácil. Porque nunca é fácil lidar com o mais terrível da humanidade. Todavia, dado o tempo necessário, acostumamo-nos ao seu teatro, absorvendo-o pouco a pouco, cada dia mais, para descobrirmos, ao final, que, acima de tudo, a experiência não nos deixará por muito tempo ainda.