10/03/2015 | Luciana Romagnolli
Convidada internacional, a pesquisadora francesa Josette Féral apresentou o percurso do encenador belga Ivo van Hove como “extremamente contemporâneo”, articulando ideias sobre o emprego do espaço e do jogo em suas criações.
Para a professora da universidade Paris 3, Van Hove situa-se num lugar “singular” no panorama teatral de hoje pela elaboração, composição e tratamento das criações, “Mas são também encenações baseadas sobretudo no texto, o que é bastante atípico. Textos de origens variadas, tanto clássicos quanto contemporâneos”, observou, chamando a atenção para o repertório de uma centena de espetáculos criados pelo belga desde 1981.
“Algumas das peças de Ivo van Hove permanecem em seu repertório durante muitos anos e circulam por teatros e festivais. Às vezes, ele faz muitas produções por ano em vários países diferentes, e temos impressão de já há alguns anos houve uma aceleração do ritmo de produção. Não é raro que crie cinco ou seis espetaculos por ano”, disse Féral. Entre 2015 e 2016, serão apresentadas Antígona, Mary Stuart, Kings of War, A View from the Beach e Songs from Far Away (Canção de Muito Longe, que estreia mundialmente nesta terça, 10, na MITsp).
“Ivo van Hove se define como diretor de texto sobretudo. Todos os espetáculos partem de um texto e de autores cuja variedade é instrutiva porque revela ao mesmo tempo um repertório clássico do qual se inspira e um repertório contemporâneo. De 2009 a 2015, ele montou Cocteau, Goldoni, Gorki, Tchekhov, O’Neil, Sófocles, Molière, Shakespeare, Schiller, Müller, aos quais se acrescentam autores contemporâneos. Além disso, adaptou vários roteiros de filmes de Pasolini, Bergman, Antonioni e Cassavetes”, contextualizou.
Féral ressalta o fato de Van Hove ter começado montando suas próprias peças, prática que posteriormente abandonou dando lugar a uma seleção de evidente ecletismo. Em vez de escolher por afinidade, gosto, época ou estética, ele diz escolher textos pelos quais se apaixone sem ter planos previamente e que permitam diferentes formas de representação. “Tento penetrar debaixo da pele do texto”, já disse o encenador.
A pesquisadora considera que, na obra do belga, “um texto ouvido em seus mínimos detalhes é como que revelado em sua máxima potência”. “Um espectador poderia esperar um teatro convencional, porque é teatro de texto, até texto clássico”, observou Féral. “No entanto, não é nada disso e aí reside toda originalidade da obra de Van Hove e a surpresa que cada encenação traz. Suas obras nunca estão onde esperamos, exigem reajuste constante do olhar e da visão”. Um dos procedimentos de apropriação apontados pela professora é a evocaçao de traços e rastros na memória do espectador, como no caso de montagens feitas a partir de filmes.
O “extremo contemporâneo” desse teatro estaria no ponto de junção de um teatro de texto com um teatro visual cujos componentes são performáticos. É o caso da cenografia de Jan Versweyveld, “que instala espaços sem fronteiras e que desafiam o espectador”, observou Féral. “Seu teatro também depende do jogo dos atores, que estão em confliro com o real que nos circunda”, acrescentou.
Sob essa perspectiva, então, as marcas da performance declinam-se sobre todos os elementos da cena, seja texto, espaço ou atuação. Quanto ao espaço, Féral diferenciou o espaço imagem e o espaço volume. “O espaço é primordial (no trabalho de Van Hove), é ao mesmo tempo volume e instalação, feito de obstáculos e vazios que os atores precisam atravessar. Trata-se de um espaço volume muito mais do que um espaço imagem. É algo que se situa entre a instalação e a desinstalação. São espaços não necessariamente realistas, embora com elementos realistas evidentes, que se associam a outros da ordem do imaginário. Esses espaços raramente representam lugares específicos ou, quando fazem isso, o trabalho da imagem tem tal dimensão que vai muito além da simples localização ou lembrança mimética”, analisou. Além disso, tais espaços configuram-se, ao mesmo tempo, como concretos e metafóricos, interiores e exteriores.
“A contemporaneidade extrema provém dessa visão muito atual do espaço, indefinido e inacabado ao mesmo tempo. O público, diante de determinadoas obras, tem impressão de estar diante e dentro de espaços que não são totalmente interiores nem tampouco exteriores, mas ao mesmo tempo as duas coisas, que expressam o aqui e o ali”, reforçou. Conjuntamente, as câmeras de vídeo e telas de projeção presentes nos espetáculos oferecem “saídas geográficas”, configurando ainda espaços da memória, do imaginário e do sonho.
Quanto ao uso de tecnologia em cena, é tão comum quanto depende de que o próprio projeto “imponha” a necessidade do olhar dramatúrgico da câmera, segundo Van Hove. Exemplo são minicâmeras instaladas nas orelhas dos atores para permitir que o espectador veja o que o ator vê, em um dos espetáculos de ser repertório. Nesse campo, Féral destacou ainda a presença das telas de projeção como geradoras de uma dinâmica de descorporalização dos corpos (na tela) e recorporização dos corpos (em cena). “O corpo na tela beneficia-se da corporeidade dos atores no palco, e os do palco são recorporalizados pelos atores na tela”, observou. Para ela, os vídeos têm, ainda, a “força de tirar personagens do cotidiano e dar a elas existência abstrata”. “O olhar do videoartista é um pouco como o pincel do pintor que escolhe pontos de vista, foca e revela perspectivas que o olhar do espectador nem sempre percebe”.
A pesquisadora identificou, nisso, uma relação de presência-ausência. “É interessante que as personagens são ao mesmo tempo corpo e imagem. Da mesma forma que o mundo que nos cerca, essas personagens são extremamente contemporâneas”, disse.
Para encerrar, Féral citou o livro Teoria da Informação e da Percepção, no qual Abraham Moles investiga de onde vem a percepção de originalidade de uma obra. “Ele observa que vem de seu grau de imprevisibilidade para o espectador. Diz que, claro, baseia-se no desconhecido, mas também na detecção de elementos conhecidos na obra. Se houvesse só o desconhecido, estaríamos no caos”, explicou. “O que faz com que as encenações de Van Hove sejam tão originais é que trazem ao mesmo tempo elementos de reconhecimento e elementos imprevisíveis. O público acha que está navegando em um térreo conhecido e familiar, e no entanto ele inverte as coisas e mostra que as peças que pensamos conhecer são ao mesmo tempo distantes, têm aspectos que ainda não vimos”.