09/03/2015 | Soraya Belusi

É sobre precariedades que parece se desenvolver o trabalho da grupo colombiano La Maldita Vanidad: precariedade das relações, da comunicação, dos afetos, dos desejos, da situação econômica, do pacto estabelecido entre espectadores e atores na construção de uma ilusão partilhada, mas sempre prestes a desabar, assim como os próprios personagens de Morrer de Amor, Segundo Ato Inevitável: Morrer, apresentado na programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp. Se a princípio o espectador se coloca como quem assiste a um exemplar da estética naturalista, pura e simplesmente, vê-se no decorrer do espetáculo lançado ao lugar de cúmplice, mais que testemunha, dos fatos que lhe são apresentados.
O coletivo, jovem representante dos laboratórios teatrais que se estabeleceram na Colômbia (entre eles os referenciais La Candelaria e o Teatro Experimental de Cali) já trouxe ao Brasil outras de suas obras, das quais Los Autores Materiales foi, para esta autora, sua carta de apresentação, e deixou marcas na memória de extrema potência, algo que se repete na fruição de Morrer de Amor. Outros elementos investigados em trabalhos anteriores tornam a ser vistos nesta obra, como a utilização dos espaços não-convencionais como abrigo para suas produções, a dramaturgia que beira o melodramático, um personagem cuja ausência detona o desenrolar dos fatos, o vigor do trabalho dos atores que sustenta o pacto precário na instauração de um recorte da realidade.
Porém, se em Los Autores Materiales o público se mantém com certo distanciamento geográfico estabelecido pela relação frontal e a divisão de uma quarta parede fictícia, neste mais recente trabalho a proximidade física amplia ainda mais a possibilidade de afetação do espectador, convocado a entregar-se, reflexiva e emocionalmente, à narrativa que se desenrola e ao registro hiper-realista da atuação e da encenação.
O diretor e autor Jorge Hugo Marín parte de uma situação extremamente íntima, o velório de um ente querido, para descortinar não apenas o que se passa no foro familiar, sempre restrito às quatro paredes, mas, de maneira implícita, aponta para temas de caráter político e social, como o tabu da homossexualidade, a dificuldade econômica nos países latino-americanos, o alcoolismo e a incomunicabilidade entre os seres. A dramaturgia se sustenta mais sobre o que não se diz do que sobre aquilo que se expõe. O que os personagens parecem querer esconder é o que mobiliza o espectador, que, de alguma maneira, assim como em um drama novelístico, descobre o que se passa diante de seus olhos bem antes que os personagens da trama, já que estes insistem em dissimular aquilo que estão cansados de saber.
A proximidade, quase fusão, entre cena e plateia estabelecida em Morrer de Amor lança um desafio ainda maior ao jovem grupo de atores que precisam sustentar uma qualidade de interpretação diante dos olhares permanentes (e desconfiados) do espectador, sustentando mais uma vez esse paradoxo da precariedade que nos propõe Marín. Essa iminência do rompimento da verossimilhança, tão cara na construção de uma suposta ilusão teatral, exige dos atores, e consequentemente do público, uma qualidade de atenção singular no convívio que se estabelece em cena, como se ambos soubessem que têm um acordo a ser cumprido. A responsabilidade – outro tema caro à dramaturgia de Marín – pelo acontecimento teatral é, assim, partilhada entre ambos.
La Maldita Vanidad equilibra seu trabalho na borda do limite, assim como os personagens do texto de Marín. Tudo pode se romper a qualquer momento, e é justamente desse lugar que algo potente consegue surgir.  Mais do que sobre o morto, aquele que é velado, é sobre os vivos que nos fala Morrer de Amor. Só estes ainda têm o direito de se afetar e (por que não?) chorar por si mesmos e por aqueles que não estão mais entre nós. Como se nos lembrasse dos nossos paradoxos, pactos e responsabilidades.