07/03/2015 | Luciana Romagnolli
Os Diálogos Transversais começaram na noite de sexta-feira (07), com a apreciação do professor Norval Baitello Junior sobre A Gaivota. Já de início, Baitello apontou a impossibilidade de se fazer uma leitura linear do espetáculo. “Nós temos uma incômoda e prazerosa repetição, uma ritualização com diferentes personagens, então, não ser da ordem da linearidade pode significar ser da ordem da circularidade ou do plano, das imagens. E as imagens nesse espetáculo aparecem de uma maneira muito múltipla, não só os elementos (de cena), mas também as imagens interiores”, disse.
“Claro que Tchekhov, como precursor do fluxo de consciência, foi um mestre dos diálogos interiores. Muitas falas acontecem nessa peça não como diálogos com outros, mas com a personagem mesma, ou com a alteridade do público, ou da personagem com a imagem que ela faz de si mesma, por isso as repetições”, observou.
Baitello lembrou a cena em que Kóstia diz a Nina: “caímos os dois no mesmo turbilhão”. “O escrito e a atriz eram profissões de celebridade, como hoje é o jogador de futebol. Eles tinham como grande sonho se tornarem famosos, colocando seu destino num mundo de imagem pública”, comentou. Outro elemento de destaque apontado, de fundo psicologizante, foi a relação complexa entre filho e mãe. “Essa simbiose de mãe e filho se projeta também sobre a Nina como imagem. A mãe que era atriz consagrada e a Nina que queria ser atriz consagrada; a Nina era um pouco a mãe amanhã, que se perpetuaria. Ao mesmo tempo, a mãe se vê ameaçada pela imagem da Nina jovem, por todo viço e beleza física da juventude, e a mãe participa do fracasso do filho. Esse elemento do fracasso e sucesso está previsto no mundo da imagem. Quantas histórias a gente conhece de celebridades que caíram em abismo sem fundo pela decadência da própria imagem? A fama, o vazio e a ilusão”, enumerou. “Isso acontece também com o escritor Trigorín, num dos monólogos ele apresenta o vazio da vida que tinha, tanto que sua relação com a Nina não resistiu a esse vazio”, completou Baitello.
O professor lembrou ainda de imagens, objetos e materiais que aparecem no palco. “Por exemplo, as plumas de saco de lixo despedaçado: o luxo e o lixo, para lembrar o poema do Augusto de Campos”, citou. “Uma das cenas que achei belíssima, de uma plasticidade maravilhosa, é a do banquete, que depois se repete na mesa de jogo. É petersburguiana. São Petersburgo é uma cidade dos superlativos, tudo é grande, longe, exuberante, porque foi planejada por um imperador que pensava grande – por isso, chamava-se Pedro, o Grande. E esta mesa, lembra justamente uma mesa de um palácio construído por Pedro, o Grande, nos arredores da cidade de São Petersburgo. Mas nós brasileiros temos outra referência: de Macunaíma e dos banquetes antropofágicos. Ali, naquela mesa, todo mundo estava devorando todo mundo, era uma guerra de egos, o escritor, o médico, a atriz”, disse.
A gaivota surgiu como outra imagem incontornável, de um pássaro alegre, grande e esvoaçante, em contraposição ao corvo. “Nina era efetivamente a gaivota, enquanto o corvo fica em sua máquina de escrever – um objeto já arqueológico, mas, naquela época, objeto de desejo de todo jovem ter e se tornar escritor”, comparou o professor, mencionando a mitologia de uma colônia britânica para a qual a gaivota é o animal da luz e do dia, enquanto o corvo é considerado da noite. “Isso aparece no texto do Tchekhov. O elemento da gaivota empalhada, portanto morta, mas transformada em imagem, é uma referência à atriz que tem sucesso ou ao escritor que tem sucesso, mas escreve sempre as mesmas coisas”, sugeriu.
Também as cordas e as portas, como elementos cênicos, foram objeto de análise. “Do jeito que estavam no palco, poderiam ser um trapézio mas poderiam ser forca também. O suicídio estava anunciado nas cordas. Depois, as portas vazias – a porta que não tem porta, que eu não leva a lugar nenhum, que pode ser associado com a imagem que nos leva para a imagem. Então, a gente sai pela porta e continua estando no mesmo lugar”, comentou.
Baitello identificou, ainda, a forte presença do circo na encenação, notável tanto nos trapézios quanto na música. “Nas mudanças de cena, é o circense que entra”, constatou. “E o circo é por excelência o espetáculo aéreo, com trapézio e malabarismos nas alturas, por isso a lona não pode ser baixa. É onde estamos em contato com os primatas que somos. Mas somos primatas terrestres, e o circo recorta essa relação com o aéreo, que por sua vez é o habitat da gaivota, o habitat do sonho e o habitat dos diálogos interiores também”, disse.