15/03/2015 | Welington Andrade
Uma livre-adaptação que convida a crítica à exposição de alguns impasses
As Três Irmãs, de Anton Tchekhov (1860-1904), é daqueles textos do repertório dramatúrgico universal sobre o qual a historiografia do teatro e a teoria crítica vêm produzindo há mais de um século um caudaloso ideário calcado em asseverações e assertivas tão lúcidas quanto incontestáveis:
“A renúncia ao presente é a vida na lembrança e na utopia, a renúncia ao encontro é a solidão. Três Irmãs – talvez o mais perfeito dos dramas de Tchekhov – representa exclusivamente seres solitários, ébrios de lembranças, sonhadores do futuro. Seu presente é pressionado pelo passado e pelo futuro, é um entretempo, tempo de estar exposto, no qual o retorno à pátria perdida é a única meta” (Peter Szondi).
“O símbolo dessa vulgaridade sufocadora é, na obra de Tchekhov, a província: a vida mesquinha, longe das possibilidades de experiência da capital. Eis o tema de As Três Irmãs, um dos dramas de Tchekhov que produz com um mínimo de enredo o máximo de emoção” (Otto Maria Carpeaux).
“… por outro lado, é indubitável que em As Três Irmãs soa uma nota, senão inteiramente nova, pelo menos pouco audível nas peças anteriores [de Tchekhov]. Com efeito, na densa tessitura da vacuidade e da existência supérflua, o apelo pela atividade significativa e útil, a busca de uma “causa” e de uma “fé” capazes de infundir sentido às coisas, torna-se sensível. As Três Irmãs sonham com Moscou do mesmo modo que a intelligentsia russa almeja uma transformação libertadora e radical no ambiente e no modo de vida do povo e dos indivíduos” (Jacob Guinsburg).
“Os indivíduos apresentam variações nas suas atitudes e responsabilidades, mas o sentido de um fracasso geral foi introduzido de maneira decisiva. A estrutura e o método do drama tchekhoviano começam a sofrer alterações que conduziriam à sua verdadeira originalidade – na qual todo um grupo ou toda uma sociedade podem ser vistos como vítimas. Não se trata agora da resolução dramática do destino de um indivíduo isolado, mas de uma orquestração de respostas a um destino comum. As Três Irmãs [1901] e O Jardim das Cerejeiras [1904] são os exemplos maduros dessa forma essencialmente nova” (Raymond Williams).
E se Elas Fossem para Moscou?, a livre adaptação que Christiane Jatahy fez do clássico tchekhoviano, transformando-o tanto em uma experiência teatral como cinematográfica, parece apostar mais no caminho da desconstrução textual do que propriamente no do estabelecimento de uma intertextualidade cujo foco seria a consciência mediadora, disposta a fazer, paradoxalmente, a criação individual “co-incidir” com a tradição cultural (proposta explorada nesta edição da MITsp, por exemplo, pelas encenações de A Gaivota, por Yuri Butusov, e Senhorita Julia, por Katie Mitchell).
As figurações da subjetividade em crise – projetadas não somente no lirismo dos monólogos tchekhovianos fadados a parecerem expressões dialógicas, como também na temática da supressão do entendimento que as personagens têm delas mesmas – talvez tenham desaparecido aqui para dar lugar ao exercício da manifestação de uma singularidade exacerbada, obtida por meio da simulação de um jogo de reprodução da “vida como ela é”.
É a exploração ad infinitum desta atmosfera naturalista – conduzida por atrizes que controlam os efeitos da espontaneidade muitíssimo bem – que provoca a crítica a expor alguns impasses: em que medida a admiração por tamanha naturalidade das intérpretes não enreda o espectador na trama de uma intrínseca pessoalidade que convida o artista a não exceder o espaço de sua própria rotina social? Por que o texto tchekhoviano é desinvestido de sua potencialidade lírica e se converte no encadeamento nervoso de depoimentos etnológicos muito próximos aos discursos ideológicos do homem médio? Como garantir que as tiradas cômicas da primeira metade da encenação e as explosões emocionais da segunda parte fujam ao esquematismo histriônico-histérico que dá sustentação a muitas manifestações da indústria cultural? Que diferencial crítico apresenta o filme em relação à peça, para além do fetiche da intersecção entre o real e o virtual, que já o Quixote de Cervantes se propunha a enunciar?
A identidade em crise do sujeito tchekhoviano parece ter aderido aqui às incontáveis manifestações de plasticidade às quais se apega o indivíduo contemporâneo para se sentir feliz: da evocação mnemônica de produtos da cultura pop ao uso de aparatos tecnológicos que reduzem a vida àquilo que somente acontece “em tempo real”. Que a crítica (atividade que sempre fracassa, seja quando se apropria totalmente do objeto artístico, seja quando não é capaz de compreender seus efeitos de sentido) esteja equivocada e não tenha visto no palco os elementos líricos, satíricos, dramáticos, irônicos e críticos que, juntos, o dramaturgo do lá-então e a companhia do aqui-agora foram capazes de explorar.