07/03/2015 | Daniele Avila Small
Pode-se dizer, com convicção e com razão, que As Irmãs Macaluso, de Emma Dante, é uma peça sobre relações familiares, sobre o lugar da mulher no contexto cultural da Sicília, sobre a vida e a morte, ou ainda sobre a condição humana. A aparente simplicidade da encenação e o conteúdo prosaico das falas são estratégias criativas do espetáculo que oferecem ao espectador a possibilidade de ver a peça a partir de diferentes recortes temáticos dentro de um círculo de grandes questões humanas. Arrisco dizer, no entanto, nesta breve reflexão feita no calor da hora, que esta também é uma peça sobre a beleza – e sobre a beleza pictórica.
Ao mesmo tempo em que não consigo abandonar a hipótese, questiono se não seria um terrível lugar comum falar de uma peça italiana e dizer que se trata de uma peça sobre a beleza. Talvez isso se dê pela ideia (romântica?) que tenho (ou temos?) da Itália: um país pictórico, um país cheio de história da arte, um país-legado para o olhar. Afinal, o belo de que tratamos aqui não é só o belo na vida, mas o belo na arte. A beleza também é tema da narrativa, de certo modo, mas é especialmente uma questão formal, um motivo na elaboração da visualidade do espetáculo.
Na narrativa, na história da vida das personagens, a beleza aparece pela falta e pela ânsia. O desejo de beleza aparece, por exemplo, na ansiedade das crianças de ir à praia e na ênfase dada pela encenação aos rostos delas no momento do deslumbramento da visão do mar. A frontalidade, com todas as atrizes enfileiradas em primeiro plano, fechando o acesso do olhar do espectador ao fundo, evidencia o efeito da paisagem sobre o semblante. Este me parece ser um momento-chave da peça, um quadro da vontade de vida e do belo. O desejo de dançar, por parte de uma das irmãs, o desejo pelo sucesso no futebol, no caso do sobrinho, e o desejo de amor dos pais, também aparecem como desejo de beleza e tentativa de desvio para a vida em um contexto mortificador.
No que diz respeito à questão formal, às escolhas estéticas da criação, podemos apontar algumas estratégias da encenação que talvez comprovem esta filiação pictórica que intuímos no agenciamento do belo. A visualidade do espetáculo é econômica e direta, os elementos são poucos, mas são operados de modo complexo. Há um trabalho de luz e sombra bastante pictórico. Há ainda um trabalho sobre a relação entre superfície (a planaridade da tela) e profundidade (a perspectiva) – uma questão da pintura –, que aparece na dinâmica entre o enfileiramento das atrizes no proscênio, a movimentação coral e coreográfica que corta o palco em múltiplas direções e as repetições fantasmáticas no distante fundo do palco. E há um estudo de cores – não apenas na dramaturgia do figurino, que divide o preto e o colorido de modo propositadamente esquemático, mas na decupagem das cenas a partir de cores frias e quentes na iluminação de Cristian Zucaro.
A imagem inicial, com a penumbra bem no fundo do palco, constrói um efeito sfumato, um vislumbre de rostos mórbidos como máscaras, enquanto a atriz dança mais iluminada e mais à frente no palco, produzindo um chiaroscuro teatralmente pictórico. Outro exemplo marcante é a entrada da mãe e sua fala afetuosa. Depois de uma cena das meninas com o pai, iluminada com tons frios e encenada com frontalidade que beira o desconfortável, a mãe entra e lhes dirige a palavra: o âmbar toma conta do palco, aquecendo a cena, que dissolve por um momento a frontalidade e culmina com a dança do casal, uma cena solar e epifânica.
Mas foi a última sequência de imagens do espetáculo que me fez pensar na relação intrínseca da peça com esta suposta triangulação entre o belo, a vida e o pictórico. Quando a irmã mais velha tem a revelação da sua real condição e a ela se entrega, assistimos a um trabalho sofisticado de construção de imagens cênicas que podem provocar na mente do espectador a criação de imagens de morte muito potentes. Logo em seguida, com delicadeza diligente, as imagens de morte se fundem com a que considero a imagem de vida mais brilhante do espetáculo, que eu não poderia descrever, para não aguar a experiência de quem não viu. Mas posso dizer que a fluidez da passagem, num vai e volta ligeiro entre morbidez e vitalidade, na figura da atriz que protagoniza os momentos finais, abre o olhar para a possibilidade de convívio da beleza com o seu negativo, de uma maneira que só vemos, ou vemos com mais clareza, naquelas que são as imagens de arte.