12/03/2015 | Daniel Toledo
egundo a filosofia budista, a capacidade de se colocar no lugar do outro e compartilhar seu sofrimento é uma das funções mais importantes da inteligência humana. Pois é a esse exercício que se propõe o bailarino e coreógrafo israelense Arkadi Zaides no espetáculo Arquivo, de 2014. Habitante da próspera Tel Aviv, cidade situada a apenas 20km da Cisjordânia, o coreógrafo compartilha com o público uma complexa partitura audiovisual, corporal e vocal criada a partir de uma observação minuciosa da realidade da fronteira e, sobretudo, dos corpos que habitam aquela realidade social – os quais são trazidos ao palco no próprio corpo do bailarino.
Talvez como forma de dar a ver essa complexidade, Zaides opta por uma encenação não-espetacularizada, na qual importantes aspectos do contexto de criação são revelados ao público logo no início da apresentação. A partir de procedimentos comuns ao teatro documentário, o artista nos informa, sem rodeios, que as imagens exibidas no telão foram filmadas por moradores palestinos e trazem, nesse sentido, somente cidadãos israelenses como ele. Se não há palestinos nas imagens, é pelo olhar deles que testemunhamos, assim como o próprio artista, as diferentes fisionomias – e corporalidades – da disputa pelo território da Cisjordânia. É com olhos de palestinos, portanto, que testemunhamos o mundo ao longo de pouco mais de uma hora.
Trabalho de grande força documental, vinculado à produção audiovisual do Projeto Câmara de B’Tselem (um centro de informações israelenses pelos direitos humanos nos territórios ocupados), Arquivo nos permite acessar, em detalhe, aspectos pouco conhecidos de um universo quase sempre visto à distância. Instantaneamente imersos em uma realidade na qual vida e guerra se misturam, percebemos que também crianças e adolescentes estão envolvidos no conflito, experimentando desde cedo um contexto em que o outro é visto e tratado como adversário, a despeito das semelhanças entre as condições de vida daqueles que, em meio à fronteira, se atacam e se defendem.
Ataque, defesa e observação, aliás, são três estados sucessivamente experimentados pelo coreógrafo, a partir de mimesis corporais que estabelecem diálogos mais ou menos diretos com o material exibido no vídeo. Enquanto alguns gestos e posições corporais estabelecem relações imediatas com o que vemos na tela, outras surgem no palco antes de terem revelados seus contextos de referência, deixando ao público a responsabilidade de lhes atribuir significado e memória. Aos poucos, contudo, vamos nos familiarizando com o “arquivo” gestual de Zaides, e as ações realizadas no palco, mesmo quando desvinculadas do vídeo ou quando o vídeo se faz ausente, passam a nos trazer memórias, significados e imagens sociais.
Se, de início, o próprio Zaides, como morador de Tel Aviv, parece observar de longe aquele contexto de vida, aos poucos tanto ele quanto nós nos aproximamos das disputas entre colonos israelenses e palestinos. De meras testemunhas do espetáculo, passamos, com o tempo, a fazer parte dele, como fica evidente nos momentos em que somos observados por personagens do vídeo e quando o próprio Zaides, em desdobramentos coreográficos de gestos do duro cotidiano que nos apresenta, repetidamente avança em direção ao público, com passos firmes e olhar aguerrido. Experimentamos, ali, o lugar do outro, já imersos em conflitos que – por que não? – também são nossos.
Bastante presente no espetáculo, a repetição de gestos e imagens tem marcantes efeitos sobre a obra e o público. De um lado, é a partir da repetição que gestos cotidianos são convertidos em coreografias, e estas vez ou outra incluem saltos e giros que em algo lembram movimentos da dança clássica. De outro, também é a repetição – de gestos e vozes, vale ressaltar – que nos atenta à escala e à persistência do conflito.
Em síntese, Arquivo nos propõe uma experiência de imersão na violenta rotina de pessoas que não conhecemos e que, em cena, se constituem como outro. Não por representarem outras etnias, nacionalidades ou religiões, mas por, de modo semelhante a muitos brasileiros, não terem seus direitos humanos assegurados e viverem em permanente estado de exceção.