06/03/2015 | Michel Fernandes
Trazer na abertura da 2º MITsp um espetáculo feito A Gaivota, texto em que o russo Anton P. Tchekhov utiliza uma linguagem metateatral para abordar as paixões humanas, por si só é bastante oportuno. Na montagem de Yuri Butusov o efeito é potencializado: ao explorar um sem número de possíveis leituras de uma mesma cena, ele valoriza o processo criativo e tece uma ode ao fazer teatral.
A cenografia do espetáculo já dá a chave do trabalho: são estruturas de madeira que, feito um negativo fotográfico, dão a impressão de que assistimos à encenação dos bastidores, como se o público estivesse colaborando para a criação da peça à qual assiste.
No primeiro ato, dos quatro da montagem, Konstantin (Timothy Tribuntsev) fala sobre formas novas de se fazer arte, apresentando, inclusive um texto teatral que escreveu e que, segundo Nina – a atriz que o interpreta –, é dificílimo por não apresentar um personagem vivo e, sim, uma molécula. Mas para Kóstia (Konstantin G.) a arte não precisa apresentar a vida como ela é nem como deveria ser, mas em seu estado onírico, e, feito Kóstia, Butusov parece buscar formas novas, testar diversas combinações na vasta paleta que um encenador de seu nível detém para apresentar diferentes leituras de uma mesma cena, deixando ao espectador qual a de sua predileção.
Assim como no trabalho da coreógrafa alemã Pina Bausch, em seu Tanztheater Wuppertal, que pedia a seus bailarinos que respondessem, em movimentos, a perguntas, frases, palavras ou qualquer outro estímulo, o elenco do Teatro “Satiricon” transmite fisicamente, com uma espécie de movimentos labanianos, a expressão visceral das paixões que comandam seus papeis. E isso não é privilégio de Marina Drovosekova, que interpreta a Menina Que Dança (e, diga-se, dança muito bem), mas de todo o elenco como vemos no final do primeiro ato, cena que trouxe à memória trechos da videodança O Lamento da Imperatriz, de Bausch, talvez por a cena ter lampejos expressionista e Pina ser discípula de Kurt Joss, pai da dança expressionista alemã.
O segundo ato começa com a mesa fartamente posta e Nina (Agrippina Steklov) chegando com a novidade de que seu pai e sua madrasta viajaram e que será possível frequentar a casa. Centro das atenções, a Arkadina de Polina Raikina não economiza na afetação das falas e dos gestos que dão ares de sua grandiloquência.
Nina, neste momento, carrega a pureza da juventude repleta de sonhos, crenças; não esconde seu fascínio por Trigorin (Denis Sukhanov), de quem é leitora fervorosa e cuja fama a deslumbra. Já Trigorin, à princípio empertigado e cheio de si (Sukhanov tem uma postura longilínea que dá uma favorável afetação ao personagem, como se ele fosse uma representação, o personagem que criou para si), depois vira, literalmente, a mesa e revela a insatisfação que tem com sua vida.
Um denominador comum aos quatro atos é o rodízio dos atores nos personagens durante a repetição das cenas, o que, além da desejada perspectiva do momento de criação da cena (performatividade?), evidencia a pluralidade de leituras cabíveis num mesmo texto.
São memoráveis o trabalho de Artyom Osipov como Dorn, Marriana Spivak como Masha, Anton Kuznetsov como Chmaraiev, embora o elenco todo conserve intacta a fé e a verdade cênicas.