06/03/2015 | Welington Andrade
A encenação como rascunho de reescritura circular do texto teatral
Escrita em 1896, A Gaivota, de Anton Tchekhov, denominada pelo próprio autor de “comédia em quatro atos”, trata de uma série de impasses e de crises que estão na base conceitual e formal de nossa modernidade crítica. O tema predominante é a frustração que os personagens experimentam nas duas frentes paralelas e interdependentes que alinhavam as ações transcorridas no palco: a vida amorosa e a vida artística. Há dois escritores e duas atrizes em cena, fadados ao fracasso pessoal e/ou profissional. Em torno deles transitam outras figuras cujas micro-histórias reverberam ou potencializam o que é vivido pelo quarteto central.
As cisões – que se dão entre a elaboração de novas formas artísticas ou a continuidade dos dados da tradição, entre “amar sem esperança” ou “mergulhar nos redemoinhos da vida”, entre viver a solidão individual tão própria do gregarismo do campo ou fundir-se espiritualmente com as multidões das grandes cidades, como Moscou ou Gênova – constituem as principais linhas de força da tão percuciente quanto dolorosa análise que Tchekhov empreende da crise da subjetividade vivida pelo homem moderno, cuja experiência individual é submetida a anulações e destruições ininterruptas, contínuas. Para a qual o suicídio final de Treplev é o último dos desenganos.
Eis que, então, a encenação de A Gaivota por Yuri Butusov priva do mesmo caráter de reescritura do texto original perseguido e realizado por Pierre Menard, o famoso protagonista do conto de Jorge Luis Borges. Também o diretor russo não se vergou ao prazer do anacronismo, “atraído por ideias primárias de que todas as épocas são iguais ou diferentes”. Antes disso, as formas teatrais a que Butusov deu luz lhe são originais e próprias, embora absolutamente coincidentes com as formas previamente concebidas por Anton Tchekhov.
O texto original tchekhoviano está aqui não integral, mas integramente preservado. Pela via do exercício de mimese? Decerto que não. Pois A Gaivota do Teatro “Satiricon” denominado A. Raykin sequer é exercício (essa também uma ideia primária que tanto fascínio tem exercido sobre artistas contemporâneos). O grande poder de comunicação que o espetáculo estabelece com a plateia reside em sua qualidade de rascunho permanente, rasgado no exato momento em que alguma forma possa se cristalizar e se tornar admirável. Direção, interpretação, cenografia e música, assim, concorrem para fazer do texto uma ruína circular (novamente Borges), inesgotável em sua capacidade de gestar o novo através do atávico, do pré-existente.
As distorções – como seria de se esperar – causam estranhamento, mas estão todas elas a serviço da engenhosa – talvez mais apropriadamente industriosa – conversão das versões do texto em versões da escritura cênica. O lirismo das falas originais (a partir de algum momento, não será mais possível falar em originalidade) transforma-se em gritaria, acompanhada por música muito alta, desagradável aos ouvidos. Butusov aqui tem a incrível capacidade de nos apresentar um Tchekhov altissonante e tonitruante, um meio-irmão de Zeus. O bucolismo da vida rural é retratado em meio a muita sujeira, muito detrito, muitos elementos desperdiçados em cena (sobretudo papéis rasgados e água derramada – elemento recorrentemente explorado em seu volume incontido, disforme). Sobre este aspecto, vale registrar, então, o impactante trabalho de design cenográfico assinado por Alexander Shishkin.
A interferência regular do próprio diretor em cena, engrossando o coro de uma energia feérica, excitada, delirantemente pop, marca o caráter de ensaio que também advém das inúmeras cenas que se repetem com atores e inflexões diferentes. O importante é não se deixar aprisionar por nenhuma forma já conhecida, a fim de que não somente o não-Dumas que habita Treplev como também o não-Turgueniev que mora em Trigorin tenham plenas condições de existir cenicamente.
Mas se o teatro de Butusov é um teatro de ardor e de excessos, ao espectador atento é possível também usufruir aqui e ali de algumas irrupções de subjetivismo poético e de contenção. A ambiência pianística de muitas cenas, o uso de uma precária máscara de tosco papel e a percepção de que o histrionismo lancinante muitas vezes dissimula o mais pungente do patético são algumas delas.
Errática, rudimentar e anômala, a presente encenação de A Gaivota constitui um misto de método e loucura disposto à criação de uma experiência de impossibilidade ficcional exemplar: nela nós continuamos sendo nós mesmos, mas atingimos o centro de irradiação do universo tchekhoviano mediante a ocorrência de nossas próprias experiências pessoais.