08/03/2015 | Luciana Romagnolli

“Para construir, é preciso destruir primeiro”, diz Yuri Butusov, o diretor russo do Teatro “Satiricon” denominado A. Raykin, que apresentou A Gaivota na 2ª MITsp. Em uma master-class e um encontro do Pensamento-em-Processo, o artista compartilhou com o público questões que foram fundamentais do processo criativo do espetáculo.
“A polifonia para mim era muito importante, a multiplicidade e uma liberdade absoluta”, disse. “Mas, no final das contas, a profissão de diretor é o trabalho de ator mais a composição. Quem falou isso foi Meyerhold, e é uma verdade absoluta. Baseado na peça ou no material, o diretor tem que criar um mundo novo, uma realidade nova”.
De modo mais sistematizado, o diretor elencou os três pontos principais do seu teatro: “As bases das minhas obras são, primeiro, o ator; segundo, o espaço; e, terceiro, o trabalho com o texto. Também posso dizer a música, seria quatro pontos, mas não é como a música de fundo. É a música que eleva a alma do espetáculo como base para a emoção”, acrescentou. “Tem peça que é rock, jazz… É preciso ouvir o som de cada peça, o que ela emana para você. Só não sei dizer como fazer”.
Força presente no espetáculo, a repetição tem base justamente na música. “Eu analiso os detalhes como se fosse uma obra musical. Por isso, o ritmo, a repetição, o tema principal e lateral. Como qualquer música que tem refrão, vou repetindo tantas vezes quanto meu sentimento me falar e assim crio a estrutura”, explicou Butusov. Mas as cenas refeitas também foram pensadas a partir da perspectiva dos atores. “Qualquer artista que trabalha com teatro sonha em desempenhar o papel de Nina. Criei o espetáculo para as pessoas terem a oportunidade de se testar”.
O projeto da peça nasceu em 1996, mas só foi à cena em 2011. “Naquele momento, a vida era muito difícil, mas ainda éramos jovens e com esperança de poder mudar tudo”, recorda Butusov, dizendo que tanto ele quanto a Rússia sofreram transformações significativas nesses quase vinte anos. “Passou uma vida inteira. Agora estou trabalhando com Brecht”, contou o diretor.
Mas um aspecto permanece aparentemente inalterado no pensamento do russo sobre teatro: a recusa a contar uma história. “Eu quero que o espectador não venha assistir a uma história sobre alguém – a Rússia no século XIX”, exemplifica. “Quero destruir esse pensamento e que o tempo dele (espectador) fique igual ao do espetáculo, para nem perceber que se tornou parte do espetáculo. Por isso, eu destruo essa pureza de dramaturgia”.
“Se vocês já assistiram a Esperando Godot, sabem que também foi criada com base em que os personagens não fazem nada. Toda vida está dentro deles. Eu decidi (em A Gaivota) mudar esse fato de que tudo está parado: eles estão se movendo o espetáculo inteiro – e, ao mesmo tempo, parados. Então, o espetáculo é um círculo em que a pessoa precisa andar para encontrar sua saída”, disse ainda Butusov.
Além da mudança de dinâmica, ele fez escolhas a partir da expectativa de recepção do texto de Tchekhov. “Esse drama é muito complicado e filosófico. Na Rússia, é considerado uma obra que o espectador comum não vai entender. Eu quis criar um conflito com isso e mudar a obra para que as pessoas comuns pudessem entender”.
Para Butusov, a entrada ele mesmo como diretor em cena atende a uma possibilidade aberta pelo próprio texto, por ser uma peça sobre teatro, de presença de mais um criador, comparável a Treplev – o protagonista. “Teatro é um lugar sagrado para mim, o diretor não é”, disse, afastando as ideias de sacralização da função.
Conflito
A experiência do conflito entre Rússia e Ucrânia não interfere abertamente em seu teatro. “Eu não estou sentindo a guerra diretamente. Estou sofrendo por causa da muita mentira que existe na sociedade, tenho muita pena de que pessoas estão morrendo, mas iria sofrer do mesmo jeito se eu não fosse diretor. Se isso faz alguma pressão adicional sobre mim, não sei, é difícil. Pode ser, ao contrário, que quando está tudo bem seja mais fácil trabalhar. A guerra é uma coisa muito assustadora. Eu acho que me sentiria terrível de qualquer maneira, sendo diretor ou não. Pode ser uma coisa banal, de senso comum, mas odeio mortes, assassinos. Nem imagino como eu poderia me comportar no exercito. É quase uma doença, uma coisa muito dolorosa, não sei como mudar isso”, disse, assumindo um ponto de vista pessimista. “Eu nasci ainda no tempo soviético, sabemos que nossas palavras não significavam nada, tudo era uma mentira completa, e não tenho vontade de participar disso. Quando 99% estão elegendo uma pessoa e é uma mentira, é uma forma de protesto não participar. Tenho essa falta de fé de que possa mudar algo”, disse.
Contudo, a passagem de tempo desde a idealização de A Gaivota também guardou modificações quanto à postura política. “Na época, eu gostaria de falar sobre teatro e problemas pessoais. Agora posso dizer que é necessário falar sobre problemas sociais. Posso até dizer que sou egoísta e os problemas do país não e importam, mas eles me influenciam. Mas os problemas de A Gaivota são os meus e das pessoas que fazem a peça, não do país. Se você gostaria de ver por que aconteceu a Revolução, não vai encontrar a resposta”.
Butusov disse ainda que “desconhecimento é mais importante do que conhecimento, porque dá oportunidade de aprender estudar, e conhecimento mata”. Enfrentar a incompreensão, portanto, estaria no seu caminho como artista. “Posso dizer: eu não sei nada. Todo dia acordo com o sentimento de que sou inútil e sem talento, por isso me esforço para ser aberto e sentir tudo que acontece ao meu redor. No teatro, pode-se não ter medo de nada, e eu sou muito medroso. Posso dizer que me escondo da vida real no teatro. Quando saio na rua, não me sinto muito confortável, tenho medo dos vendedores de lojas. O teatro é o único lugar onde entendo alguma coisa, mas só um pouquinho”.
Quanto às cobranças de fidelidade a um texto prévio (como o de Tchekhov),  ele acredita que um dramaturgo “bom” não deve ter medo de nada que um diretor faça.  “Claro que se pode estragar qualquer coisa, mas, se você confia no outro, se há algo verdadeiro na peça e se está sendo honesto, esse espetáculo vai continuar espetáculo. Vejo isso com muita liberdade”, disse, já contando a resposta que dá a quem lhe cobra fidelidade a uma obra como Rei Lear. “Você tem o celular do Shakespeare?”