09/03/2015 | Pollyanna Diniz
“(…) extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais”
Paulo Leminski
As paredes da casa estão impregnadas de história. Sabe aqueles segredos não revelados por anos? Os assuntos escondidos? As conversas que não chegaram nem a acontecer? Em Morrer de amor, Segundo Ato Inevitável: Morrer, da Fundación La Maldita Vanidad Teatro, da Colômbia, despontam as dores advindas de relações que se deixaram empalidecer pelo tempo, pela falta de liberdade de nos mostrarmos como somos.
A encenação proposta pelo colombiano Jorge Hugo Marín nos leva a observar de perto os sentimentos e conflitos que se instauram durante o velório de Luís (Miguel González). Estamos ali, sentados na sala da casa onde familiares choram o morto. Somos/estamos cúmplices da encenação. A carga semântica implícita ao local torna-se um dos elementos da teatralidade nessa escritura cênica. Não adiantaria estar dentro de uma casa, do ponto de vista estético, se não houvesse uma apropriação do potencial simbólico do lugar, o que possibilita ao espectador uma mudança de perspectiva da cena. O jovem grupo colombiano, formado há cinco anos e que já tem pelo menos sete montagens no repertório, realmente se empodera da materialidade espacial da encenação. O caixão no meio da sala, como nos velórios de antigamente ou nas casas pelo interior do país, permite que estejamos diante de conflitos familiares que não conseguem permanecer incólumes, mesmo diante da morte.
A dramaturgia assinada pelo diretor Jorge Hugo Marín trata de questões arraigadas na cultura não só da Colômbia, mas de toda a América Latina, principalmente posições de intolerância e ignorância diante das diferenças. Muitos jovens homossexuais ainda sofrem, sim, todo tipo de preconceito e violência, dentro e fora de casa. Não podemos esquecer o contexto em que estamos inseridos. No Brasil, em 2015, ainda precisamos de uma comissão especial na Câmara dos Deputados para discutir se o conceito de família pode estar restrito à união entre um homem e uma mulher, como prega o Estatuto da Família, projeto de lei proposto pelo deputado pernambucano Anderson Ferreira. Uma lei que desconsidera as relações homoafetivas e ainda veta a adoção de crianças por casais gays.
Como montagem que opta pelo caminho do realismo, Morrer de Amor traz atuações que transitam por um limite tênue. Por muito pouco, as interpretações poderiam soar exageradas e, aí, perder a relação com a realidade proposta pela encenação. O que não permite que isso aconteça é o talento dos atores e da direção, aliado à clareza de possibilidades e de compreensão da cena, inclusive a partir da dramaturgia. O texto serve ao propósito de revelar o cotidiano de uma família classe média baixa que não sabe lidar com os seus conflitos. Se todos os atores conseguem trabalhar no mesmo diapasão, um dos destaques é a atriz Juanita Cetina, intérprete da jovem Olga, que foi namorada de Luís (Miguel González) na infância. As oscilações na voz, o medo no olhar, os trejeitos assumidos pela personagem levam muitas vezes a plateia ao riso ou à impaciência diante da ingenuidade.
Morrer de Amor nos leva à certeza de que, se não podemos extinguir todo remorso, como propõe o poema Bem no fundo, de Paulo Leminski, é melhor encarar as fissuras causadas pelas ações, ausências e omissões. Como plateia, sentimos não só o morto da família. Choramos não só a ficção. O que lamentamos mesmo é a realidade de Morrer de Amor.