09/03/2015 | Maria Eugênia de Menezes
O vínculo intrínseco do teatro com o presente não se manifesta apenas na escolha dos temas a serem levados ao palco. O apego dessa arte ao seu tempo transcende os embates políticos e sociais do momento e comumente faz-se evidente também na forma – se é que ainda faz sentido a dicotomia entre conteúdo e invólucro. Em sua ânsia por conectar-se à sua época – período de inimigos difusos e certezas implodidas –, o teatro contemporâneo empreende imenso esforço em desapegar-se dos paradigmas do drama realista – corrente hegemônica dos últimos dois séculos.
Tem início claro a vigência do realismo: 1855, quando da recusa das telas de Gustave Courbet pela Mostra Universal de Paris. Mas, nas letras, a abordagem já vinha de longe, amparada pelas reflexões de Schiller e Goethe. O que a obra Morrer de Amor, Segundo Ato Inevitável: Morrer faz, de certa maneira, é nos convocar a atualizar os termos dessa discussão, como se chamasse ao exame dos limites e das potencialidades do drama.
Criada em 2009, a jovem companhia colombiana La Maldita Vanidad não parece inconsciente dos perigos do terreno em que se lança. Mesmo sob o risco de soar anacrônica, vem contar uma história com princípio, meio e fim. Traz uma radiografia “íntima” de Bogotá, cidade de sua sede. Põe seus traumas e fissuras sob luz e foco, amplificando esse “real” ao limite, ao ponto da convulsão. O enredo simples dá conta do funeral de um jovem, Luís Eduardo. Morto em circunstâncias desconhecidas, o rapaz é velado rodeado pelos vizinhos, pelos irmãos e pela mãe.
Algumas escolhas do diretor e dramaturgo Jorge Hugo Marín merecem ser consideradas. Uma delas diz respeito à ambientação da cena e ao pacto firmado com o público. No lugar da convencional sala de espetáculos, a encenação se dá em uma casa. Todos os efeitos cênicos estão reduzidos – a iluminação limita-se a um abajur, a cenografia compreende um caixão e um desgastado sofá. Ao espectador cabe um lugar indefinido, entre dentro e fora da cena.
O olhar da plateia, aliás, parece ter sido, desde sua fundação, um aspecto central no trabalho da Maldita Vanidad. Em seu espetáculo de estreia, El Autor Intelectual, o grupo delimitava um espaço de cumplicidade – mas também de distanciamento – ao situar as ações diante de uma janela e transformar quem lhes assistia em voyeur. Já em Morrer de Amor sacrifica-se essa fruição protegida pelo anonimato em nome de uma proximidade excessiva, quase “incômoda”.
Ainda que se defina como uma companhia “muito colombiana”, La Maldita Vanidad relaciona-se com o contexto histórico e político da Colômbia de maneira distinta de seus pares mais antigos, caso de coletivos reconhecidos como Mapa Teatro ou La Candelaria. O contexto de guerra civil vivido pelo país nos chega por seu impacto em âmbito privado. Uma constante na investigação de Marín, as relações familiares são o lugar da violência e dos afetos, das emoções amplificadas. Em Morrer de Amor, a ausência paterna – que tem seu posto ocupado por uma matriarca masculinizada – dá testemunho indireto desse lugar em que os homens adultos foram à “batalha”, deixando para trás mulheres e filhos.
A necessidade de elucidar o enigma da trama, com explicações sobre a causa da morte de Luís Eduardo, subtrai da obra um estranhamento e um desconforto que lhe eram benéficos. Pode soar como mera deferência às convenções do gênero, que preconiza que o conflito – depois de exacerbado – carece de resolução. Porém, ao revelar a natureza do vínculo de cada um dos personagens vivos com aquele que morreu, a obra escrutina o alcance da opressão delineada.
Diante de situações extremas (neste caso, a morte) como reage o núcleo familiar? O luto é um processo sem fim em um ambiente regido pela ignorância, pela incompreensão, pelo silêncio – que invariavelmente se impõe quando cessam o choro e o grito. A barbárie, nos lembra a montagem, não pode ser sempre contida fora dos limites da casa. A brutalidade se manifesta no mínimo, impregna o gesto e a palavra – não é o avesso do amor.