10/03/2015 | Valmir Santos
As reflexões de classe e de gênero originalmente implicadas em Senhorita Julia (1888) estão sublinhadas e problematizadas também segundo a cor da pele na livre adaptação de Christiane Jatahy para o envolvimento da moça branca, filha do patrão, com o motorista negro da família. Se no prefácio à sua peça o sueco Augusto Strindberg (1849-1912) dizia não preconizar lição de moral, a diretora tampouco cede a julgamentos ao atritar matizes escandinavos com a memória escravocrata do Brasil que cava os abismos sociais ora perpetuados.
O conteúdo sociopolítico implode no espaço da intimidade: o flerte, o gozo e o fim das ilusões. Apesar da convergência dos corpos, os personagens carregam tamanha autonomia que suas falas nem sempre soam como integrantes de um diálogo. Antes, traduzem as respectivas convicções burguesa e proletária forjadas na relação de trabalho. A subordinação do pai dele ao pai dela foi herdada sob os mesmos domínios da casa grande onde a menina Julia e o menino Jelson se viram crescer sob óticas distintas. O modo como o nome dele vem à luz, lá pela metade da obra, clareia como a identidade é constituída, ou melhor, apagada segundo as regras do jogo social.
Essa dramaturgia de conflagrações é captada de forma aguda na encenação estruturada sob a lógica dos procedimentos audiovisuais explícitos. O cameraman in loco equivale a um terceiro olho: o voyeur a quem o espectador se depara também ele na condição de observador. Mas o papel de receptor aqui não guarda nada da passividade induzida pela maioria dos programas televisivos.
A passagem da transa do casal contrapõe a hipertrofia da representação visual erótica dominante no imaginário publicitário. Expõe os ângulos da lente e aqueles captados a olhos nus ponderando o efeito teatral desses corpos em estado de desejo, ou seja, dois atores que não chegam ao ato sexual, obviamente, porque os códigos cênicos estão escancarados. O consciente anota e a imaginação voa longe mesmo assim.
A projeção crítica das imagens do texto de Strindberg permanece no horizonte do público aguçado ainda pelas linguagens do vídeo e do cinema, que imprimem outros fluxos à narrativa. Temporalidades e espacialidades dançam conforme a coreografia de imagens simultâneas ou gravadas que compõem a cena. Boa parte das sequências é exibida (por vezes editada) sobre telas móveis que, uma vez recuadas, deixam transparecer os nichos cenográficos da cozinha e do quarto do rapaz. No plano da boca de cena a mediação imagética é menos ostensiva, os atores podem falar direto aos olhos da audiência.
O registro naturalista das atuações de Julia Bernat e Rodrigo dos Santos guarda nexo com a peça sincronizada com os pendores literários da Europa do final do século XIX assim como corresponde à cultura da telenovela brasileira. O pulo do gato de Jatahy está justamente em não aceder às convenções assimiláveis à primeira vista (a aventura amorosa de uma noite com desfecho trágico). Há um momento em que a atriz desvia da personagem-título, olha para a plateia e lembra que “não estamos sozinhos”. Noutro, exige que o operador de câmera desligue o equipamento.
As inquirições quanto ao caráter ficcional e a revelação permanente do artifício operacional da cena culminam a força da teatralidade de um projeto que não se embriaga pela hibridez e maneja o drama com pertinência. A direção de arte de Marcelo Lipiani valoriza os closes, as frestas e as paisagens de uma obra expositiva das contradições: exuberâncias e precariedades, sensualidade e violência, ódio e dissimulação. Recortes candentes para o momento brasileiro de extremismos numa sociedade dita cordial, que parecia não querer enxergar suas crispações seculares.
Chegada a Julia da Companhia Vértice de Teatro, aguardemos na programação da MITsp a chance de cotejar a versão da mesma peça pelos ingleses Katie Mitchell e Leo Warner, junto à companhia alemã Schaubühne, na qual a perspectiva cinematográfica também é seminal.