12/03/2015 | Michel Fernandes
Se por um lado concordamos com Walter Benjamin que a história como nos é apresentada é um “ato de barbárie”, vez que a ótica do que está documentado é a do “vencedor”; a outra face da moeda, aqui tratada como as manifestações artísticas a partir de um fato real, é, pelo menos deveria ser, inconclusiva, ou seja a matriz do problema nos é apresentada sem uma solução definitiva, antes nos engravida de questões sobre os conflitos que se nos apresenta. Sem dúvida que esse é o território de Arquivo, do bailarino e coreógrafo israelense Arkadi Zaides, que, sem julgar palestinos ou israelenses, lança um olhar questionador, incisivamente político, sobre o conflito Israel/Palestina, a partir dos vídeos divulgados pelo Projeto Câmera (Camera Project) da ONG B’Tselem. Tal organização israelense, cujo foco é a preservação dos direitos humanos dos palestinos nos territórios ocupados pelo exército de Israel, fornece câmeras a voluntários que vivem nesses territórios ocupados para registrar cenas cotidianas e possíveis atos que contrariem tais direitos. Esses vídeos são a matéria-prima para que Arkadi crie seu trabalho.
O cotidiano conflituoso entre israelenses e palestinos não é novidade para ninguém; nem o Projeto Câmera, que divulga em diversas redes sociais – como Facebook e no Youtube –, vídeos que podem, e devem, ser vistos não só por israelenses – que passam a ficar a par dos desmandos feitos contra os palestinos –, mas por todos ocupados com a extinção da violência. Todavia, Zaides teve a sábia decisão de selecionar vídeos desapegados da cartela que poderia redundar no sensacionalismo: em Arquivo a violência cotidiana aplicada pelo exército e pelos colonos israelenses são simples traços de intimidação e humilhação aos palestinos.
Mas Arkadi não se ocupa em fazer uma ode pró-palestina, todos sabem pelas incontáveis fontes de informação – jornais, revistas, sites etc. – que instituições fundamentalistas palestinas, como o Hamas e a Al-QaedaM, são altamente perigosas, não só para a nação israelense como para outros povos, vide o atentado às torres gêmeas, em Nova York, ou ao jornal francês Charlie Hebdo. Mas, ao dançar a violência de sua aldeia, ele alcança a vibração da violência em qualquer aldeia (uso o termo “aldeia” parafraseando o poema de Fernando Pessoa).
Como coreógrafo atento e sensível, sua lente criativa está cravada na qualidade de movimentos do material vídeo-gráfico, a princípio como copista que deseja tatuar em seu corpo uma espécie de roteiro físico. É como se ele ensaiasse os movimentos vistos no vídeo com a própria imagem virtual e, uma vez capturado pela memória corporal, sons, movimentos, respirações, intenções deixam o espaço “real” e ganham a poesia e a amplitude da criação artística: uma espécie de dança ritualística primitiva, violenta, furiosa. Arkadi Zaides ocupa territórios distintos no mesmo Arquivo: o real e o ficcional/criativo.
Ao denunciar a violência por meio de sua arte, o bailarino e coreógrafo assume seu papel de artista politicamente engajado. Ele não busca autopromoção ao percorrer terreno tão árido e espinhoso, mas assistir a seu Arquivo nos impulsiona a muitas indagações, como, por exemplo, será que os fundamentalistas não se agruparam para revidar a violência sofrida com a violência praticada? Tem uma cena em Incêndios, do libanês Wadji Mowawad, em que um médico do acampamento de refugiados da guerra civil no Líbano fala sobre a sangrenta lógica do revide utilizada pelos civis libaneses. Não seria igual a lógica Israel/Palestina? E no Brasil: traficantes/policiais nos morros cariocas, por exemplo, não seriam pares nacionais dos israelenses e palestinos?
Arquivo não se propõe a responder nenhuma dessas questões, sua grandeza reside, outrossim, em provocar interrogações. São os “derrotados” e os “vencedores” batalhando por uma história longe da “barbárie”.