No filme Selma – Uma Luta pela Igualdade (foto), dirigido por Ava DuVernay, há uma cena emblemática na qual as forças reunidas na luta pela afirmação dos direitos dos negros convergem e alcançam sua potência de transformação: a travessia da ponte no caminho até a capital do Alabama, durante as marchas realizadas por Martin Luther King e outros tantos ativistas. Ali, definem-se novos rumos para a política em relação à população negra: o alijamento do direito ao voto nos EUA torna-se insustentável. Para Eugênio Lima, integrante do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e um dos curadores do Ciclo de Debates Internacional Discursos sobre o Não Dito, ao lado de Leda Maria Martins e José Fernando de Azevedo, a realização de um seminário sobre as questões do negro na mostra seria “um momento análogo” ao do filme: o de “atravessar a ponte”. “Achava que esse era o momento, por tudo que está acontecendo no Brasil, de trazer a discussão para cá e a gente ser uma espécie de centro dessa discussão”, disse, durante o debate realizado ontem (04/03), no Centro Cultural São Paulo.
Por falta de suporte de patrocinadores, o seminário inicialmente desenhado precisou ser reduzido, mas o primeiro encontro do ciclo de debates já levantou discussões fundamentais sobre a sociedade atual a partir dos questionamentos sobre o negro. Para situar o debate, Eugênio Lima citou a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (de Sejamos Todos Feministas), que disse serem os brasileiros “racialmente ambíguos” em uma entrevista sobre a adaptação cinematográfica de seu livro Americanah, protagonizada por Lupita Nyong’o. “O brasileiro não sabe se é negro ou branco”, concordou Eugênio, “e essa ambiguidade é o ‘x’ da questão”.
Para José Fernando de Azevedo, diretor do grupo Teatro de Narradores, um os principais ganhos desse processo de concepção de curadoria foi justamente entender que “hoje, em 2016, discutir a questão do negro é discutir uma questão mundial” e, “no Brasil, não é uma questão de minoria ou maioria, mas uma questão estrutural e estruturante da vida e da sociabilidade brasileira”. “Todos os entraves que tivemos nos mostram que estávamos discutindo a sociedade brasileira, e para tratar do negro é preciso encarar os problemas dessa sociedade”, disse. E exemplificou abordando a formação do teatro nacional. “O mito do teatro brasileiro nasce com a negação do negro, ausente no discurso [cênico] sobre a sociedade escravocrata, ou em posição de supressão. Como foi possível constituir a ideia de teatro em uma sociedade como a nossa suprimindo o negro?”, indagou.
Azevedo defendeu a necessidade da militância para enfrentar limitações apresentadas pelo modelo de patrocínio cultural vigente. “Qualquer evento sobre a negritude feito por uma organização cultural é uma espécie de cooptação e tentativa de esvaziamento da discussão efetiva; transforma em evento o que deveria ser discussão e intervenção na vida cultural do país. Um seminário não vai resolver esse problema. Temos que pensar em maneiras de radicalizar a ação. Organizar uma rede brasileira e mundia de discussão e intervenção, ou o debate nunca alcançará sua radicalidade”.
Essa radicalidade está relacionada à necessidade de “transformar a discussão sobre o negro em discussão sobre o destino do homem contemporâneo”. “Há um pensamento sobre o mundo contemporâneo a partir do lugar do negro. Isso não significa que o racismo não tenha sempre existido, mas ‘o negro’ como dizemos hoje é uma invenção do capitalismo moderno europeu para justificar a expropriação e a opressão. E a cada vez o capitalismo reinventa os seus negros. Falar da arte negra é falar do funcionamento do mundo hoje”, disse Azevedo. Nesse sentido, segundo ele, a “escravidão moderna que transforma africanos em negros não é um arcaísmo”, mas atual: “a condição para a igualdade e a fraternidade europeia é a escravidão nas colônias”. “A verdade do pensamento europeu é a escravidão”, concluiu.
“A questão negra não é uma questão do negro, é do Brasil, das Américas, do mundo”, concordou Leda Martins, afirmando o mesmo contra as proclamadas “questão da mulher” ou “questão do índio”. “São questões de cidadania e da construção das subjetividades sociais, então são do interesse de todos”.
Professora e pesquisadora da UFMG, Leda retomou a questão da “invenção do negro” como “diretamente ligada à modernidade, a partir dos séculos XV e XVI”. Segundo ela, na Idade Média começam a aparecer associações da figura do negro com o demoníaco. E, no século XIX, quando se está consolidando uma ideia de nação brasileira, o negro é alijado do teatro por uma plateia de classe média branca que se revolta contra a presença de negros como protagonistas. No Brasil, em 1926, De Chocolat fundou a “Tudo Preto”, uma companhia de teatro negro que transitaria entre Rio de Janeiro e São Paulo mas acabaria já em 1927. “Quase um século depois, os mesmos transtornos encontram os grupos de teatro e performance atuais”, comentou, destacando as restrições ligadas ao fenótipo e a condição à margem das discussões e produções, por mais ricas e urgentes que se mostrem.
Em um “adágio” lido, ela definiu poeticamente o “não dito” que batiza o ciclo de debates como o que se mantém dissimulado, não se menciona, se evita, se silencia, se teme; daquilo que não se fala, é interdito, aquilo de que não se tem o direito de discordar – e sobre o que se quer problematizar, “não mais devemos nos sujeitar e demandamos o direito de nos expressar”. Do poético ao prático, Leda falou da dificuldade de captação de patrocínio para discussões ou criações acerca de questões relacionadas às matrizes negras. “Onde exigimos reconhecimento de nossa existência como sujeitos, isso se torna mais difícil”, disse, e completou depois: “É constrangedor como essas matrizes são abordadas na exceção e não como parte integrante de todos os lugares que têm como foco a arte”. Citou então uma série de criações de matriz negra – das artes performáticas, o blues e o batuque, epistemes etc. – que “modulam a cultura brasileira em suas diversas formas”. “É o que temos a oferecer, e urge integrá-los em pesquisas e patrocínios”.
Dentre outras tantas questões debatidas no encontro, uma frase de José Fernando de Azevedo pode ser tomada como síntese no movimento de construção de “alguma coisa junto”, que é para ele a base do sentido de político. “A dimensão do não dito é a do bloqueio da imaginação”, disse. Imaginar e construir, juntos, uma sociedade com outros lugares para o negro exige voz e escuta.