Sons, coletivos e segredos – Crítica de Ancés, por Lorenna Rocha

Um amontoado de terra. Alguns instrumentos, um vaso de comigo-ninguém-pode. O círculo de areia branca contrasta com a caixa cênica preta. Dois semicírculos nas extremidades do espaço demarcado, com duas pessoas tirando som. Pedido de licença aos visíveis e invisíveis. Um canto e um pedido: vocês podem cantar comigo? Em Ancés, de Tieta Macau, a vibração sonora e a crença na coletividade sensibilizam a movência do performer.

Enquanto cantamos e dançamos os passos do primeiro ritmo que Macau lembra ter dançado na vida, ele espalha a terra dentro do círculo. Adubar o espaço ou secretamente lançar um segredo: o tempo se dilata até que todos parem o canto. De perto da terra preta, acompanhamos um movimento de retorno: o performer passa a colocar o material em cima de si mesmo, enterrando-se no espaço. O braço que delicadamente empurra a terra para o corpo de Macau logo em seguida é o que dá os primeiros registros de movimento que acontece a partir do solo: as memórias da dança se alimentam de dentro desse espaço, em relação com os vivos e mortos, com o passado e presente.

Fora de um registro mais legível, que se embaça mais ainda com o pouco uso da luz cênica, Macau passa a se contorcer lentamente em cima da terra preta, movendo-se como quem nasce. O corpo adulto parece aprender a se mexer. Na medida em que vai conseguindo ficar de pé, a pisada no solo fica mais forte. A estranheza dos desenhos feitos a partir de seus movimentos, junto a um registro facial que deforma seus traços, elaboram partituras corporais fora do regime naturalista. O grotesco da imagem vem com risadarias e gritos. Seus olhos estão quase em estado de transe.

O corpo preto se balança desejando romper com as expectativas em torno do signo negro: o que é uma dança preta? A pergunta não deixa de se conectar com outra, elaborada por um dos espetáculos da MITbr, Eles fazem dança contemporânea, de Leandro Souza: Am I Black enough for you? O confronto à mensuração da negrura produzida por essas duas interpelações é um modo de escapar dos códigos que associam como negro, de escapar do logos e das imagens que são vinculadas automaticamente às negritudes.

A cacofonia aparece em Ancés para embaçar mais uma vez a noção de entendimento, dando sequência a um giro entre ritmos, canções e danças da cultura popular negra e indígena. Macau entrega uma folha para algumas (poucas) pessoas que estão no teatro: você pode ler comigo? Todos começam a leitura ao mesmo tempo e a sobreposição de vozes impulsiona o movimento do performer. Com o uso de microfones, sintetizadores e amplificadores, as palavras ganham ainda mais eco quando são enunciadas por quem está em cena. A dimensão da coletividade se apresenta novamente, sob a chave do segredo, ativada de novo pela sonoridade.

A relação estabelecida em opacidade, no entanto, é rompida no fim da performance. A voz over e a projeção audiovisual exprimem, quase como uma revisão ou explicação, o que acabara de ser ativado na movência. Ainda que venha carregado por um texto poético, associado às imagens de pés dançando numa região litorânea, a ação de “deixar mais claro” o gesto político da performance, em relação às questões raciais, nos desloca imediatamente do corpo para o logos. Essa camada de transparência faz com que Ancés perca o que tem de mais forte: o não-saber.