No âmago de O Martelo e a Foice (Le Marteau et la Faucille), encenado pelo francês Julien Gosselin, estão a desesperança, a angústia e o abatimento, não apenas de um indivíduo, mas de um mundo regido pelas leis do capitalismo e de sua acumulação implacável. O espetáculo se ancora no conto homônimo, escrito em 2010, por Don DeLillo, aclamado autor estadunidense que se notabilizou internacionalmente por suas cortantes narrativas nas quais são reviradas, acidamente, as contradições do american way of life, com todos os seus assustadores sonhos consumistas, suas agudíssimas desigualdades sociais e, sobretudo, as violências utilizadas para sustentar uma ideologia baseada no mérito, no sucesso e na riqueza. O Martelo e a Foice acontece em uma paisagem desencantada, em que homens compulsivos e idólatras do dinheiro moldam (e também são moldados por) uma vida incapaz de oferecer um sentido maior às suas existências. Nesta lógica, parece não haver transformadoras e vívidas relações humanas, mas apenas negócios entre partes interessadas, sócios etc.
O conto se passa em um presídio no qual estão encarcerados sujeitos acusados de crimes financeiros, tais como sonegação de impostos (entre outras fraudes fiscais); tráfico de influência e uso de informações privilegiadas, visando enriquecimento ilegal; estelionato; volumosos desvios de dinheiro e golpes de investimentos em uma série de sofisticados mecanismos de corrupção, orquestrados pela própria dinâmica da chamada financeirização da economia. Neste ambiente, acompanhamos Jerold Bradway, um investidor de 39 anos, condenado por infrações cometidas contra o sistema financeiro. Por entre suas observações, recordações e diálogos, entrevemos as ruínas de um modelo social dominado pelo lucro. A encenação de Gosselin enfatiza, sobretudo, a aflição de Jerold, a agonia que lhe atravessa ao constatar o esvaziamento de sua vida. Quais subjetividades são criadas neste mundo neoliberal? Qual noção de ser humano é formatada pela lógica acumuladora, mercadológica e monetária?
No palco, apenas um ator. Joseph Drouet encarna o atormentado protagonista que sofregamente despeja suas abundantes palavras, em uma torrente verbal que, pouco a pouco, se torna alucinante. A atuação é, no princípio, comedida, como se a personagem estivesse represando suas incontornáveis convulsões internas; o tom de voz, algo monocórdio, nem sempre consegue ocultar o desespero que habita aquele ser. Ao longo do espetáculo, Drouet modula agilmente suas expressões vocais para dar vida às outras personagens que interagem com Jerold, esculpindo entonações, timbres e intensidades, a partir das quais uma vibrante paisagem sonora se cria. O diretor francês ressalta as palavras de DeLillo, mantendo, apesar dos pequeninos cortes, o fio narrativo quase integralmente. O ato de ouvir é significativo na montagem. Somos atingidos por uma massa de palavras que contém os apontamentos, as rememorações e os diálogos travados pelo narrador. De um programa televisivo, visto pelos presidiários, jorram termos técnicos, jargões financeiros e uma fraseologia que não consegue fazer mais do que revelar a vacuidade e a paranoia de um universo tecnocrata. O crítico cultural Bruce Bawer (2003) afirma que as personagens de DeLillo são extraordinariamente sensíveis às palavras. Por isso, a linguagem para estas criaturas é uma pungente tentativa de afirmar suas existências. O ator imprime gradualmente a ansiedade em sua performance, tornando cada vez mais inquietos os seus braços e mais lancinante a sua voz. Uma fremente trilha sonora confere ainda mais tensão à presença de Drouet, conduzindo-nos quase ao paroxismo de uma vida que se mostra insuportável.
De todo modo, não se pode ignorar a visualidade do espetáculo. O solitário narrador está posto em uma espécie de estúdio de rádio, tendo à frente apenas um microfone que amplifica seu desassossego. Uma contínua e saturada luz vermelha ataca nossos olhos e engolfa o corpo do homem. À medida que a performance avança, a iluminação avermelhada (quase escarlate) exacerba a urgência, o perigo e a ameaça que constituem a personagem. Este é um traço relevante da concepção cênica de Gosselin, isto é, a sua capacidade de forjar um tom sutilmente sombrio para o conto. Atuação e desenho de luz, fundidos freneticamente, provocam crescentemente um certo suspense que desvela o absurdo e a melancolia de Jerold. Uma amarga ironia desponta se considerarmos que a foice e o martelo, bem como a cor vermelha, estão historicamente associadas a partidos, lideranças e revoluções socialistas.
Aqui no Brasil, periferia do capitalismo mundial, O Martelo e a Foice ganha novas dimensões. Como explicar o fato de que, em plena pandemia da Covid-19, as enormes fortunas de milionários e bilionários brasileiros se avolumaram ainda mais? Ou ainda, como o mecanismo (ou esquema, melhor dizendo) da dívida pública (e seus infindáveis juros) têm contribuído para acentuar o corte de gastos públicos (políticas de austeridade), aprofundar desigualdades sociais e desviar fundos para o chamado sistema financeiro? A elite financeira do país, compromissada tão somente com os ganhos e subserviente ao imperialismo dos centros globais, não hesita, principalmente nos últimos anos, em pressionar (e manipular) governos para fragilizar direitos trabalhistas, aumentar as terceirizações e privatizações e, não raramente, custeiam golpes políticos. Um dos símbolos mais violentos desse processo é a figura de Paulo Guedes, Ministro da Economia do Brasil. Defensor do liberalismo, Guedes faz de tudo para deixar o “mercado” (grandes empresários e banqueiros) dominar a vida social brasileira, propondo reformas letais, como as da previdência, por exemplo. As figuras de colarinho (e pescoço!) branco, de imagem cristalina e discursos polidos, acentuam com as práticas e projetos políticos um acirramento do abismo social, econômico e racial no Brasil.
O Martelo e a Foice fortifica as relações que Julien Gosselin mantém com a literatura contemporânea, especialmente, a prosa. Em sua trajetória, o diretor projetou-se internacionalmente por levar romances aos palcos, tais como nos espetáculos Les particules élémentaires – adaptação da obra de Michel Houellebecq, estreada em 2013 no Festival d’Avignon; Le Père – concebido a partir da obra L’Homme incertain de Stéphanie Chaillou e apresentado no Teatro Nacional de Toulouse; e 2666 – baseado em um romance inacabado de Roberto Bolaño, estreado em 2016 também em Avignon, para ficarmos com alguns exemplos. Nestas criações, Gosselin investiga a teatralidade de literaturas não-dramáticas, explorando suas capacidades de produzir marcantes imagens cênicas. Ademais, este não é o primeiro encontro entre Gosselin e DeLillo. O encenador produziu uma vasta e labiríntica trilogia teatral que adaptou três romances do escritor estadunidense, a saber: Joueurs, Mao II e Les Noms, montagem surgida em 2018 no Festival d’Avignon. Nesse espetáculo de 8 horas, alguns dos tópicos mais caros ao diretor estão articulados, como a relação entre teatro e literatura, a intrincada intermidialidade produtora de experiências multissensoriais, a exploração de outras abordagens e diálogos com o espectador, provocando formas descontínuas de lidar com o fenômeno cênico, um profundo debate sobre as inter-relações entre linguagem, processos históricos e expressões da violência nos séculos XX e XXI, como o terrorismo. Em 2019, Gosselin concebeu Vallende Man, a partir do romance The Falling Man, também de DeLillo, com atores do Teatro Internacional de Amsterdam.
O Martelo e a Foice estava já incluído na monumental trilogia, mas só em 2019 se configurou como uma encenação independente. Gosselin é geralmente conhecido por experimentos cênicos ricos em linguagens e recursos, estruturando uma abundante hibridez que conjuga vídeos, projeções, cinema, poesia e música ao vivo. Grandes cenografias, consideradas barrocas, se juntam a espetáculos duradouros e labirínticos em seus inumeráveis temas. Criado com o Teatro Nacional de Estrasburgo, Le Passé, de 2021, é um dos maiores exemplos dessa linha de trabalho, ao transladar para a cena três novelas e duas peças teatrais do russo Leonid Andreïev. O conto estadunidense encenado realiza, pelo contrário, uma experiência mais intimista (já concretizada em Le Père, um monólogo chafurdado na tristeza) em que o abandono é peça central.
O jovem diretor francês, cofundador, em 2009, da cia Si Vous Pouviez Lécher Mon Coeur, chega ao Brasil em um dos momentos mais complexos da história do país. A dor e a atrocidade de nosso contexto político-econômico deixam, por vezes, O Martelo e a Foice pálido, quase inofensivo. De que maneira o teatro de Gosselin aprofunda questões em uma realidade de capitalismo tão selvagem como o nosso? O que ele terá a nos dizer? O que ele poderá aprender com uma sociedade brasileira marcada por um capitalismo estruturalmente racista, mas, ao mesmo tempo, povoada por aguerridas estratégias de resistência? O debate está lançado.
REFERÊNCIA BAWER, Bruce. Don DeLillo’s America. In: BLOOM, Harold. Don DeLillo: Bloom’s Modern Critical Views. Philadelphia: Chelsea House Publishers, 2003.
Guilherme Diniz é pesquisador e crítico teatral. Licenciado em Teatro pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG) e mestrando em Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG). Colaborador no site Horizonte da Cena. Já realizou coberturas críticas para distintas mostras e festivais de teatro do país, como Janela de Dramaturgia (BH), Segunda Black (RJ) e Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (SP).