O Vale da Estranheza (Uncanny Valley) tematiza a mistura de estranhamento e fascinação que sentimos diante de robôs cuja aparência de humanidade ultrapassa certos limites. Detectado e nomeado pelo pesquisador japonês de robótica Masahiro Mori em 1970, o fenômeno indica a zona de turbulência entre real e artificial que se instaura quando a emulação se radicaliza e torna a réplica demasiado humana.
Seguindo a indicação do título, o trabalho do Rimini Protokoll, estreado em 2018, tangencia as discussões de humano e não humano, cópia e original, presença e representação que sempre definiram os experimentos do coletivo suíço-alemão. Em certo sentido, amplifica as concepções de criadores teatrais emblemáticos, como Gordon Craig e a supermarionete, Antonin Artaud e o duplo teatral, Tadeusz Kantor e o teatro da morte e, mais recentemente, Heiner Goebbels e a estética da ausência, para citar poucos exemplos.
Nesta conferência-performance, o Rimini continua as experimentações apresentadas nos últimos vinte anos, situadas no limiar de práticas artísticas, sociológicas, antropológicas e políticas que o tornaram conhecido por expandir as fronteiras do que se entende por teatro. Agora, o coletivo se associa ao escritor e dramaturgo alemão Thomas Melle para colocar em cena um robô que discorre sobre relações entre homens e inteligência artificial e se aproxima de questões ligadas ao pós-humano.
Proferida pelo humanoide hiper-realista, a palestra funciona a partir dessa máquina teatral construída à imagem e semelhança de Melle. Além de reproduzir sua voz, imita sua aparência e seus gestos com movimentos controlados por trinta e dois motores. A cópia exata da fisionomia, das mãos e das expressões foi viabilizada pela moldagem de uma máscara de silicone capaz de gravar a impressão perfeita do rosto do escritor, que serviu de matriz para a construção do avatar.
O processo de feitura da réplica é exibido na tela que ladeia a cadeira do palestrante, e o espectador pode acompanhar todos os passos de produção de uma espécie de cabeça escultural, que literalmente separa o autor do mundo exterior para permitir sua cópia fiel. Em seguida, um meticuloso programa de trabalho é acionado para emular as mínimas expressões faciais, o movimento dos lábios, o piscar dos olhos, a fim de chegar à maior autenticidade possível. Camada por camada, Thomas Melle é imitado, reproduzido e transferido para a máquina em um mecanismo literal de mimese que, sem dúvida, funciona como dispositivo crítico da operação central do teatro, de representação do personagem pelo ator.
Performance autobiográfica de um robô
Quando as luzes se acendem, o espectador vê os olhos do robô tentando se ajustar à claridade que projeta sombras na pele de silicone e colabora para definir os contornos do rosto e do corpo, pernas cruzadas, coluna ereta, um laptop na mesinha em frente. Numa espécie de contracena com o avatar-conferencista, outras réplicas de Melle proliferam em projeções na tela, que exibe imagens do escritor na infância, em entrevistas de divulgação da obra, em viagem com os amigos pelo interior da Alemanha ou durante a escrita de um livro.
Enquanto vemos os registros do ser humano real, o clone discorre sobre a temática do premiado romance autobiográfico do escritor, Die Welt im Rucken (O mundo às suas costas, 2016), que tematiza o sofrimento decorrente do transtorno bipolar que o impede de ter a vida funcional exigida pelos padrões de produtividade do capitalismo tardio. A incapacidade de falar em público e se apresentar em eventos de divulgação das publicações, a impossibilidade de concluir projetos como a peça que começou a escrever sobre o matemático Alan Turing e, especialmente, o pânico diante do olhar do outro são traços da falibilidade humana ausentes do autômato que o substitui, cópia fiel e infalível, capaz de desempenhar suas funções sem errar. Na performance exata do robô não há espaço para o medo e o acaso.
Para o espectador que olha o protótipo tecnológico e vê um homem quase real é inevitável refletir sobre a vida isolada na pandemia de mais de dois anos, quando a relação com o mundo foi mediada por algoritmos em contexto digital. Ao mesmo tempo, é impossível não perceber que se trata de um testemunho autobiográfico, considerado um dos recursos preferenciais do teatro contemporâneo. Mas na reversão crítica do Rimini, o monólogo confessional é dirigido ao público por um avatar. É forçoso admitir que Stefan Kaegi só precisa de uma tela, um refletor e um robô para criar uma zona de estranheza que revela o impacto da tecnologia sobre nossos corpos expandidos por computadores e celulares. Não por acaso, uma das falas do clone problematiza justamente a situação do espectador: “Se você veio aqui para ver um ator, está no lugar errado. Mas se veio para ver algo autêntico, também está no lugar errado”.
A voz intensamente humana de Thomas Melle estabelece o primeiro grau de empatia com o espectador a quem se dirige, mediada pelo robô que emite em primeira pessoa a fala autoral do escritor bem-sucedido que se tornou personalidade pública. A narrativa encadeia reflexões sobre a psicose maníaco-depressiva, comentários sobre a condição mecânica do conferencista e discursos científicos sobre robótica, com referência à biografia trágica de Alan Turing, criador do célebre teste publicado na revista Mind nos anos 1950, capaz de medir a diferença entre o homem e a máquina. Homossexual, inventor do primeiro computador digital, Turing foi submetido a uma castração química que o levou ao suicídio. A fala do duplo também inclui perguntas dirigidas diretamente aos espectadores. “Como vocês se sentem sentados aqui me ouvindo? Vocês acham que podem ser imitados, em maior ou menor grau?”
No texto autorreflexivo, a referência à imitação intensifica a estranheza de assistir ao vivo um performer artificial. É desconcertante que a avalanche de questionamentos sobre a dependência do homem contemporâneo dos algoritmos e da tecnologia, a interpenetração de espaço digital e real, a indistinção entre natureza e artifício, seja formulada por um androide cuja expressão vocal resulta de um programa neurolinguístico. Sem dúvida é um dispositivo conceitual que causa fascínio e estranhamento, um uncanny valley em que as observações sobre a natureza do humano, o fenômeno da empatia e a rejeição à diferença são delegadas a um robô.
Enquanto comenta os registros audiovisuais de sua construção, exibidos na tela, o androide traça paralelos entre a condição humana e a doença mental. “Muitos pacientes se veem como computadores. Fantasiam ter um chip implantado no cérebro capaz de criar memórias fictícias, que se tornam memórias pessoais. Secretamente, desejam livrar-se da humanidade e da responsabilidade e por isso acreditam estar à mercê de poderes inescrutáveis”.
Como sempre acontece nos trabalhos do Rimini Protokoll, a delegação da palavra ao clone faz parte de um programa performativo que transforma o tema em dispositivo em torno do qual gira parte da reflexão. Assim, a memória artificial, um dos núcleos temáticos é confrontada ao caráter aleatório do comportamento humano. Nesse sentido, o duplo mecânico funciona como máquina mnemônica eficaz para corrigir a instabilidade bipolar de Thomas Melle. Sua função performativa é apresentar em cena uma versão estável do escritor, sem transtornos funcionais. O mecanismo permite que ele disponha de um clone apto a estar no palco sem temer o olhar do espectador, que o contempla à distância. A mediação eletrônica é uma espécie de filtro de historicização de comportamentos capaz de preservar o rosto do escritor na “máscara mortuária de silicone”, ao mesmo tempo que revela o do espectador. Colabora para esse distanciamento a distribuição pouco clara das funções – quem é o performer e quem é o espectador quando seres humanos assistem a um robô? A natureza da relação entre as duas esferas, que associa íntimo e público, imediato e remoto, vivo e telemático, torna O Vale da Estranheza um ensaio sobre a mídia teatral.
Experimentos do Rimini
Formado por Stefan Kaegi, Helgard Haug e Daniel Wetzel, o Rimini Protokoll surgiu em 2002, depois que os artistas cursaram a Universidade de Giessen, na Alemanha, conhecida por seu caráter de laboratório artístico experimental, o que sem dúvida marcou sua trajetória futura. Nos vinte anos de trabalho, ficou conhecido por criar intervenções, instalações e site-specifics ao redor do mundo, frequentemente focalizando temas políticos e sociais em projetos transdisciplinares e interativos. O denominador comum dos dispositivos acionados é que nunca funcionaram como espaço de representação de realidades ficcionais, mas como lugar de encontro de performers e espectadores.
Considerados por alguns críticos os maiores representantes do teatro documentário contemporâneo, os artistas preferem definir-se pela invenção de novos formatos de performance, que em geral requerem a participação do público e se distanciam do espetáculo teatral convencional. A intenção é evidente, por exemplo, nas peças de áudio teatro, em que o espectador/ouvinte é equipado com fones de ouvido para empreender jornadas urbanas seguindo as instruções de uma gravação, como acontece em Remote X (2013), repetido em diversas cidades do mundo. Nesse caso, a experiência auditiva e a impressão visual se combinam em forma de vivência íntima feita em espaço público, que projeta uma realidade virtual nas ruas reais das cidades em que a caminhada acontece.
Mas talvez a principal característica do Rimini seja a criação de uma cena liminar em que os atores são substituídos por pessoas comuns, sem formação em teatro, que atuam para demonstrar a própria expertise, apresentando suas habilidades de “especialistas do cotidiano”, expressão cunhada pelo coletivo. Os não atores são convidados para os projetos exatamente por serem o que são na vida, ou seja, representantes de determinados estratos profissionais, sociais e urbanos que os tornam mensageiros de problemáticas diversificadas da vida contemporânea. A seleção dos especialistas acontece a partir de áreas de conhecimento, ofícios, profissões e outros tipos de pertencimento. Podem ser funcionários de uma empresa aérea falida (Sabenation, 2004), caminhoneiros búlgaros (Cargo Sofia-X , 2006), muçulmanos das mesquitas do Cairo (Radio Muezzin, 2008), atendentes de telemarketing de call centers da Índia (Call Cutta, 2005), policiais militares paulistas (Chácara Paraíso, 2007), cobradores de ônibus da Bahia (Matraca catraca, 2002), porteiros de hotel argentinos (Torero portero, 2003) e outras pessoas que nunca pisaram em um palco, como os habitantes de várias cidades do mundo que performaram 100% City, espetáculo apresentado em São Paulo por cem moradores da capital (MITsp 2016).
A escolha do homem comum como coautor e protagonista dos trabalhos responde ao desejo de que o teatro seja ocupado por qualquer pessoa que não tenha voz nem representatividade. Para os artistas do Rimini, a diversidade de idades, traços, profissões e estratos sociais dos especialistas contribui para aproximá-los dos espectadores de hoje, interessados em discutir os problemas da vida cotidiana apresentados em cena. Além disso, a distância da prática teatral que demonstram – em geral nunca fizeram teatro e, com frequência, nunca entraram numa sala de espetáculos – é essencial para garantir a falta de domínio das técnicas vocais e corporais necessárias para estar no palco. De acordo com o coletivo, a ausência de formação especializada é fundamental para eliminar a artificialidade da representação no teatro e os cacoetes do ator virtuoso, que o afastam do espectador comum. E a intenção é justamente aproximar a cena do público, integrando as duas esferas.
É interessante constatar que, também no caso do Rimini Protokoll, o ator é o alvo preferencial das críticas contra o teatro. Martin Puchner desenvolve um estudo exemplar sobre a questão em Stage Fright (Medo de palco) a partir de uma vertente de artistas que considera antiteatralista. Para o autor, a dinâmica antiteatral sempre funcionou a partir de um processo de resistência acionado no interior do próprio teatro e foi responsável pela definição de mudanças substantivas na encenação, no texto e no trabalho do ator. Nesse sentido, mais que uma oposição, foi uma força produtiva de criação de experiências radicais de outro tipo de teatralidade. Vistas desse ponto de vista, as invenções de Richard Wagner, Stéphane Mallarmé, Gertrude Stein, Samuel Beckett e Bertolt Brecht, que Puchner alinha à tendência, podem ser vistas como reações aos paradigmas teatrais em vigor.
Mas o mais importante é que a corrente analisada por Puchner em geral funcionou a partir da rejeição à arte do ator. É inegável que a encarnação da personagem pelo intérprete foi um dos principais alvos dos antiteatralistas. Olhados por esse ângulo, podem ser vistos como precursores de uma nova teatralidade, não mais baseada na interpretação de um texto por atores, mas na mobilização de outros dispositivos de constituição da cena. Sem dúvida o Rimini Protokoll dá continuidade a esses experimentos por outras vias, inclusive substituindo os atores por especialistas do cotidiano. Não por acaso, no Vale da Estranheza substitui o ator por um robô que imita um homem com medo de palco.
Referências
Críticas, entrevistas e artigos de autoria de Antonio Duran, Agnès Dopff, Annamaria Cascetta, Andrea Pocosgnich, Andreu Gomila, Bernd Stegemann, Carole Rémus, Carolin Kopplin, Chris Lilly, Christian Saint-Pierre, Cindy Marcolina, Daniel Mufson, Daniella Harrison, Duška Radosavljević, Eduardo Taylor, Eva Behrendt, Giampiero Raganelli, Gloria Sánchez, Irene Raschellà, Isabelle Hofmann, Lena Schubert, Mary Pollard, Mauricio Barría, Natasha Tripney, Peter M. Boenisch, Peter Michalzik, Rachel Halliburton, Raquel Vidales, Renato Palazzi, Sam Williams, Tanja Banković, Theo Moore,Thomas Corlin, Tim Carlson.
Livros e revistas
BALME, Christopher B. The theatrical public sphere. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.
DREYSSE, Miriam e MALZACHER, Florian. Experts of everyday. The theater of Rimini Protokoll. Berlin: Alexander Verlag, 2008.
GUIMARÃES, Julia. “Quando a cidade ocupa o palco”. Cartografias Mitsp, n. 3, 2016, p.64-70.
JACKSON, Shannon. Social Works. Performing art, supporting publics. London: Routledge, 2011.
PUCHNER, Martin. Stage Fright. Modernism, anti-theatricality and drama. London : John Hopkins University Press, 2002.
Sílvia Fernandes é professora titular sênior do Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Publicou diversos livros, entre os quais Teatralidades Contemporâneas (São Paulo, Perspectiva, 2010), Teatro da Vertigem (Rio de Janeiro, Cobogó, 2018), O teatro como experiência pública (organizado com Óscar Cornago e Júlia Guimarães, Hucitec, 2019) e Théâtres brésiliens. Manifestes, mises en scène, dispositifs (organizado com Yannick Butel, Aix-Mar