Uma questão em debate nos Olhares Críticos desta edição são os processos de destruição vigentes no país e em territórios internacionais. História do Olho – Um Conto de Fadas Pornô-noir surge de um movimento criativo seu, iniciado talvez no projeto Feminino Abjeto, passando por Stabat Mater e Camming 101 Noites, que se pauta pela concepção de performance como complicador cultural, pela profanação e pela implosão de dicotomias que organizam o sistema simbólico. O que o seu projeto artístico quer destruir e ao que quer propor outra via que não a destruição?  

Janaina Leite – Interessante essa pergunta. Fiquei me batendo aqui com a palavra destruição e acho que não é mesmo um termo através do qual opero – nem destruição nem construção. Em compensação, você coloca ideias que para mim são muito significativas: a performance como um complicador cultural, atuando na linha tênue do que a gente chama de arte e vida, complicando tanto um termo quanto o outro e nos mostrando que não há naturalização nem de um nem de outro. Isso me interessa profundamente. Está muito ligado à profanação, que eu tomo do [Giorgio] Agamben. Ele fala não de destruição, mas de uma desprogramação. Não à toa, dá o exemplo do gato brincando com um novelo de lã como se fosse um rato, e fala que ele perdeu alegremente a finalidade. Esqueceu o seu fim. Nesse descompromisso da finalidade, alguma coisa acontece, e aí vem a ideia do lúdico. E é justamente a ideia do abuso, que tem a ver com a destruição, a que ele vai propor a operação de devolver ao comum – profanar – o brincar e outras finalidades possíveis. Acho que a pornografia vem entrando na minha pesquisa dessa maneira, como tomar para nós esse território com essa mirada infantil, como quem olha ou faz algo pela primeira vez.

De quais “restos” insolúveis do Stabat Mater você partiu para este novo trabalho? E como você concebeu a dimensão escópica do espetáculo, olhar como pulsão? Que dispositivos elaborou para colocar o olhar em questão?

Sem dúvida, esse trabalho parte dos restos insolúveis de que você fala, como serão sempre insolúveis os processos psíquicos inconscientes para os quais a gente cria planos provisórios, precários. E, ali no processo do Stabat, eu ainda não tinha me dado conta de como aquele contorno era precário e de como a maneira de atualizar meu próprio romance familiar criava, na verdade, ao invés de um apaziguamento e um fechamento, uma abertura, algo muito surpreendente para mim. Então, toda pesquisa que se segue com a pornografia tem a ver com a dimensão de ato, com a dimensão de prática e com a dimensão de experiência. Eu achava, no início, tratar-se de  uma experiência escopofílica da desprogramação do olhar. Mas, não à toa, entra uma conversa com o [Georges] Bataille: cada vez mais o olho que ele almeja não é o que vê, é o que ele chama de “noite do desconhecido”. Não é mais a visão ou a imagem – e, não à toa, você usa a palavra pulsão. Tem a ver com um conteúdo mais disforme, que move a nossa relação com a imagem. Aquilo que a imagem não contorna completamente e sobra, borra, vaza. Acho ser isso o que eu descobri na minha relação com a pornografia, na minha tentativa de adentrar o mundo. Se eu posso citar algum dispositivo para operar no campo das imagens, foi a própria entrada num site de pornografia e de camming e a permanência numa performance de longa duração, imersiva. O dispositivo do encontro, de me ver através do olhar do outro e deixar o outro se ver a partir do meu olhar. É um jogo, e a gente vai construindo algo “entre”, que é a grande novidade de todo esse processo. 

A História do Olho nasce de um desejo muito vigoroso de construir a peça num “entre” o teatro e pornografia, entre meu olhar e as pessoas que estão comigo. Talvez o segundo dispositivo seja a explicitação do pensamento. Muito mais que uma metalinguagem, que pode ficar gasta por subterfúgios retóricos, é a explicitação real de um enfrentamento da pornografia como interessante problema, do corpo como potência, problema, espaço afetivo e profissional onde tudo isso fica colapsando. É na explicitação desse “entre” que a gente tenta construir um espaço de trabalho.

O que vem a ser uma escrita pornográfica de um corpo (de uma mulher) para você? Um lugar para o abjeto, para o rechaçado, para o estranho? Uma articulação entre desejo, ética, estética e política?

Sem dúvida, o corpo é o elemento divisor de águas para a trajetória que eu venho trilhando. Nele, todas as operações conscientes e inconscientes se dão. Daí, talvez, toda essa margem disforme que eu sinto ser gerada de um trabalho para o outro, sem controle mesmo, e que abre para o desconhecido de cada passo da vida e de criação. A gente tem feito um trabalho de micropolíticas, de politizar a dimensão do corpo, dos afetos e da sexualidade. Isso é uma virada histórica fundamental.

Acho que o corpo feminino, em especial, traz uma violência material para o nosso campo do discurso. A ideia do feminino é abjeta, seja performado ou vivido por não importa qual o corpo.Tocar o campo da performance do feminino para mim é sempre da ordem da abjeção. A contribuição dessas vozes, dessa maneira de criar, de trabalhar e de elaborar a cena, dentro da perspectiva de um corpo que não nega a dimensão do abjeto e do estranho, é justamente a explicitação radical e inseparável da junção entre ético, estético, afetivo e simbólico. O corpo, como entroncamento de todas essas forças, contraria, contradiz, renova e colapsa. O corpo é esse mal-estar, é esse sem resposta que frustra nossos discursos mais bem elaborados e resiste a nossas intenções de simbolização, de reparação, de organização. Vai seguir sendo matéria estranha e muito poderosa para criação. 

Luciana Romagnolli é jornalista, crítica e curadora de teatro, editora-fundadora do site Horizonte da Cena e doutora em Artes Cênicas. Foi curadora do FIT-BH 2018 e dos Olhares Críticos da MITsp 2017-2020. Coordenadora de crítica do Janela de Dramaturgia. Autora dos livros Hoje, Não? e O mistério de haver olhos.