Há um atravessamento de fronteiras territoriais e culturais quando Valter Hugo Mãe conversa com Ariano Suassuna, Guimarães Rosa e Euclides da Cunha; e o sertão com o Japão. A partir de quais pontos de aproximação essas matérias literárias e culturais constituem paralelos alegóricos na dramaturgia de “Um Jjardim para Eeducar as Bbestas“? E que ideia de organização social interessa a vocês criar com esses referenciais?
Eduardo Okamoto – Eu me formei em Artes Cênicas na UNICAMP, onde também realizei estudos de Pós-Graduação e, hoje, leciono. Outras pessoas envolvidas na criação também lecionam (Isa Kopelman e Marcelo Onofri) ou estudaram lá (Daniele Sampaio). Começo dizendo isso para reconhecer que este é o território que viabilizou o nosso encontro e a partir do qual nós falamos.
Na UNICAMP, também conheci a Profa. Suzi Sperber, minha orientadora de academia e de vida, que é grande estudiosa de Guimarães Rosa. Para ela, há estudos fundamentais que evidenciam as relações entre “Grande Sertão: veredas” e diferentes tradições espirituais, inclusive asiáticas. Daí que este autor sempre foi, para mim, um modo de olhar o sertão como uma visada para o mundo. Ele (ou ela, Sperber, mais precisamente) estão como fundamento importante disso que eu reconheço quando falo ”eu”.
Há mais. Hugo Mãe, quando escreveu “Homens Imprudentemente Poéticos”, estava referenciado em Kawabata, autor japonês de que gosto muito! Lendo o livro, vi proximidade, ainda que considerando suas singularidades, nas obras desses escritores: textos curtos, com orações igualmente curtas que, no seu acúmulo, produzem fábula e sentido. Para mim, era como se Kawabata estivesse escrevendo em português, enfim.
Reconhecendo Hugo Mãe/Kawabata, foi difícil não lembrar da escritura que outro autor fez de obra deste autor nipônico: “Memórias de Minhas Putas Tristes”, de Gabriel García Márquez. Isso nos estimulou a pensar que poderíamos, também nós, envolvidos no “Jardim…”, fazer a nossa própria versão do texto: assim, como Márquez, mudamos a paisagem, a linguagem. Mudamos, também, o desfecho da fábula.
Se, para Guimarães Rosa, o sertão é o mundo todo, nós pensamos no caminho de volta: o mundo poderia ser revisto a partir do sertão.
Finalmente, para enfatizar este encontro Ásia/Sertão, aproveitamos outras obras de Rosa, como “Orientação”, e informações sobre a imigração japonesa no sertão da Paraíba, especialmente através de dois de seus personagens fundamentais: o Seu Inhês e a sua esposa, Marly.
Este processo se deu a partir de estudo literário, mas não só. Deu-se na cena. Assim, é difícil para nós saber onde começa a dramaturgia: nas proposições da Isa Kopelman, como olhar externo; na música do Marcelo Onofri; na organização do projeto, empreendida pela Daniele Sampaio; na minha atuação e ou no movimento. Por tal motivoisso, assinamos o texto coletivamente. Com isso queremos dizer que a autoria é coletiva e que muita coisa é dramaturgia – inclusive o texto! A forma “duo para piano e atuação” enfatiza, justamente, esta dramaturgia multilinguagem.
Qual o lugar da poesia hoje, do que Valter Hugo Mãe chama de “imprudentemente poético”, entre a destruição da necropolítica e o chamado à mobilização social? E de quais procedimentos estéticos vocês fazem uso para criar essa experiência para o público?
Há alguns anos estudo o butô, esta dança criada no Japão a partir de 1959. Seu criador original é Tatsumi Hijikata. Este artista decidiu fazer da arte um modo de se contrapor ao produtivismo do capitalismo, que, naquele momento, expressava a sua força no seu pai, confundindo-se com uma “ocidentalização” do Japão. Naquele momento, ele pensou que o corpo (ou isso que chamamos de dança) poderia viabilizar uma revolta contra a sociedade que nos habita. Não é casual o título do seu trabalho mais icônico: “Tatsumi Hijikata e os Japoneses, a Revolta da Carne”.
Em 2019, num festival de dança – depois da eleição da ultradireita no Brasil, portanto -, um professor de butô me provocou: “É hora de criar a sua própria revolta na carne”. Naquele momento, eu pensei que, num contexto de barulho, exposição nas redes, disputas de narrativas, poderia haver revolta no silêncio.
Curiosamente, os homens imprudentemente poéticos narrados por Hugo Mãe não são os artistas do circuito comercial da arte. São artesãosartesão de leques e oleiro: homens que se dedicam à arte com recolhimento e silêncio. Isso é um ponto que me toca: a arte pode não ser apenas um modo de expressão e produção, mas, também, de “cultivo de si”, como diz o filósofo japonês Yasuo Yuasa.
Nesta ideia de cultivo de si, não há, como se pode pensar num primeiro momento, fuga aos problemas do mundo. Ao contrário: é a recusa por falar nos mesmos termos que o inimigo; é a recusa, até mesmo, a se contrapor. É a potência de não reagir ao que está dado, por princípio, para tentar imaginar outra coisa.
Nosso jardim é, enfim, a narrativa de um modo nipo-sertanejo de resiliência diante da incivilidade: misto de manifesto, paciência ativa, aposta na beleza e na poesia como modo de trabalho e lapidação do espírito.
É possível educar sem colonizar? O que seria uma função educativa da arte, nos termos deste projeto?
Acho que é possível convidar as pessoas à educação. No fim, é um percurso solitário e difícil e, por isso, deve ser, paradoxalmente, acompanhado. Educar-se em solidão compartilhada. É um enigma: ninguém pode ensinar nada a ninguém, mas todo mundo pode aprender qualquer coisa que, de fato, quiser.
Nestes termos, acho que a arte não educa pela transmissão de informações. Não é um modo de instrução. É uma espécie de convívio que encoraja.
O jardim do Seu Inhês é um jardim de pedras. Como um jardim japonês no meio do sertão, nos coloca em contato com as formas do vazio: tudo sempre tão transitório; as formas sempre a nos iludir sobre a sua permanência e, ao mesmo tempo, a nos assegurar a possibilidade de verificação de que tudo muda.
Se eu puder forçar uma imagem, aproveitando João Cabral de Melo Neto, trata-se de uma educação pela pedra, que não leciona, mas se adensa como lição. Isso é um outro modo de dizer que se educa pela experiência das coisas, inclusive das rochas.
Ao fim e ao cabo, queremos nos deter um pouco mais no cultivo. Quem sabe, do susto da beleza, não se educam as feras que nos habitam e vivem no mundo.
Luciana Romagnolli é jornalista, crítica e curadora de teatro, editora-fundadora do site Horizonte da Cena e doutora em Artes Cênicas. Foi curadora do FIT-BH 2018 e dos Olhares Críticos da MITsp 2017-2020. Coordenadora de crítica do Janela de Dramaturgia. Autora dos livros Hoje, Não? e O mistério de haver olhos.