Vivemos entre discursos da “polarização”, em que a escuta é impossível e a diferença gera segregação; e do consenso, com uma harmonia utópica que guarda sua faceta totalitária, outro modo de aniquilar diferenças. Parece que, em “Tragédia e Perspectiva I”, vocês propõem outra dinâmica para o laço social, em que o desacordo é tomado nos níveis da ética, da linguagem e da cena. Como tem sido o processo de construir esse espaço para a diferença a partir de um elemento comum – a garrafa de água ao redor da qual se reúnem os atores?

Alexandre Dal Farra – Essa peça está sendo um work in progress, que foi se alterando ao longo da sua criação em um ritmo muito mais frenético do que  normalmente ocorre, ao menos para mim, ao menos em termos de texto. As questões foram tornando-se mais precisas e, também, sendo redirecionadas muito rapidamente. A ideia de que se trata de uma peça sobre essaa sustentação da diferença, quase da sua busca, como uma tentativa de reavivar a possibilidade mesma de pensar, adveio até tardiamente. A cena rondou por muitos “temas” até que nos déssemos conta de que era sobre a própria linguagem, ou seja, sobre o próprio pensamento e a sua necessidade de territórios de discórdia sustentada para poder se mover. Há um passo que gostaria que conseguíssemos dar nessa última fase do trabalho. Não se trata da discórdia pela discórdia, o que se busca, em cena, creio, é o Desejo. Acredito que, nesse tempo de dinâmicas ativas de diferenciação (resisto à ideia de polarização porque ela sugere um processo acabado, como se o problema fosse o extremismo dos dois lados envolvidos, e não acho que seja o caso), que nos sugere a necessidade de que precisamos nos agrupar junto àqueles que parecem iguais a nós, há uma perda mais fundamental do que a da capacidade de discordar – e é a perda do desejo enquanto força política. Com efeito, é acachapante a nossa incapacidade de fazer frente a tudo o que está se passando contra nós. O que se tenta rastrear, na obra, é o desejo. Como se, atingidos constantemente por demandas imensas de posicionamentos consensuais, que buscam sempre satisfazer os outros, tivéssemo-nos perdidos da nossa capacidade de desejar. Se nas palavras, as figuras discordam constantemente umas das outras, isso está, no entanto, sustentado o tempo inteiro por uma busca, quase que subjacente, de encontrar a possibilidade de que essas pessoas possam achar encontrar o caminho para desejar juntas.

Luciana – O que aproxima e o que distingue Brasil e Argentina – ou a visão que Alexandre tem do Brasil e a que Lisandro tem da Argentina – nessa criação? Como colidem as concepções de realidade, de linguagem teatral e de função da arte de cada um de vocês?

Dal Farra – A Argentina é uma nação que foi muito menos atingida por essas dinâmicas de diferenciação citadas acima. Trata-se de algo que vemos em muitos lugares do mundo, no entanto, em alguns mais do que em outros. Creio que o Brasil seja um dos países onde esse tipo de dinâmica está se dando com mais força, até onde sei. Claramente, percebo no Lisandro, durante as conversas, um nível de tensão muito menor em torno desse tipo de questão. Creio que isso se deve evidentemente à situação política do país, mas não só. Há uma tradição política na Argentina que é muito forte e que soube, de alguma forma, sustentar mais os seus conflitos internos do que no caso do Brasil. Pode ser queTalvez eu esteja sendo leviano, mas, do pouco que entendo sobre pPeronismo, me parece ser um exemplo muito interessante de como esse tipo de esfera que sustenta o diverso pode se dar em um território latino-americano.

Lisandro – As visões são sempre parciais, subjetivas, eu diria até distorcidas da realidade, se é que existe tal coisa. Acredito que essas “realidades” em cada país têm suas singularidades e seus territórios entrelaçados. Neste contexto, voltamos a encontrar-nos com Alexandre (Dal Farra) para olhar e repensar cada um a partir da sua experiência e perspectiva; e que nesse cruzamento se possa produzir algo que nos surpreenda, que nos tire do terrível hábito do teatro de querer realizar um espetáculo. “Tragédia e Perspectiva”, se for um espetáculo, o será de forma fracassada, desigual, quebrada, desesperada, tal como estamos, como vivemos. Tenho a impressão de que o trabalho do Alexandre recai na palavra, na construção da linguagem muito apoiada no que é dito e projetado, e com meu trabalho acontece a mesma coisa. No entanto, percebo que meu ponto de vista como encenador/criador/produtor cênico repousa especificamente no problema da própria cena. Em dialogar com esse hábito precioso e insuportável do teatro, tanto para os criadores quanto para os espectadores e, principalmente, com as perguntas sem respostas: o que vamos fazer-atuar no teatro, para encontrarmos com quem e com o quê, para quem falamos etc. Esse presente tão potente quanto frágil, tão articuladamente falso quanto extremamente precário e verdadeiro. Vivemos em mundos polarizados, mais ou menos, menos e mais. Os extremos são mundiais, globais, humanos; inferno e paraíso, o que está no meio, nossa vida, nossas dores cotidianas, comuns, amorosas, mortais. A indústria do ser humano, a burocracia da ficção. Toda aquela bagunça impossível de receber uma forma perfeita e definida. O teatro que buscamos tenta fazer do tempo um acontecimento específico, terno, um ato de impertinência e cumplicidade, que alivie, que abra, que doa, pelo menos um pouco, que busque tornar fértil alguma superfície para sonhar, por um instante, um outro mundo um pouco mais justo e menos hostil.


Luciana – Alexandre, com qual trabalho do seu repertório este dialoga mais e de qual discorda mais? E o que isso diz das especificidades do momento político e cultural do país?

Dal Farra Curiosamente, creio que Tragédia e Perspectiva é uma peça que “discorda” mais, dentre todos os meus trabalhos, justamente de Verdade, obra que estou criando paralelamente a ela, cujo processo vou abrir no Faroffa. São quase opostas. Se Tragédia fala sobre a linguagem em si, sem o anteparo de quaisquer “assuntos” que possam dar um certo enquadramento à investigação de linguagem, Verdade é, talvez, a que mais tem um “assunto”. Embora também tenha provavelmente como seu assunto real a linguagem, em Verdade essa busca aparece enredada e instaurada por meio de uma pesquisa conectada com “conteúdos” muito reais (os militares brasileiros, a ascensão de Bolsonaro e tudo o que achamos que sabemossaber sobre isso, mas não sabemos). Tragédia e Perspectiva, para mim, retoma algo de Petróleo (2011), que segue me interessando muito, esse território da linguagem que fala sobre si mesma, mas aqui não como metalinguagem. No caso de Tragédia, por meio de um dispositivo mais sofisticado: a linguagem se tematiza apenas por meio do gesto com que se instaura. Aparentemente, há muitos assuntos na obra. No entanto, quem observar com atenção perceberá que todos estão ali como que de passagem, que são apenas meios pelos quais a linguagem se instaura, se questiona e busca conectar-se ou reconectar-se ao desejo como força política. 

Luciana Romagnolli é jornalista, crítica e curadora de teatro, editora-fundadora do site Horizonte da Cena e doutora em Artes Cênicas. Foi curadora do FIT-BH 2018 e dos Olhares Críticos da MITsp 2017-2020. Coordenadora de crítica do Janela de Dramaturgia. Autora dos livros Hoje, Não? e O mistério de haver olhos.