Como as concepções de mundo, tempo e história sustentadas pela matriz ocidental e pela matriz indígena convergem nesse espetáculo? Em um vídeo de apresentação de seu trabalho, Denilson Baniwa fala de seus esforços de tradução entre o mundo Baniwa e o mundo não Baniwa. Para vocês, quais as contradições e/ou diferenças que se encontram na forma artística criada e o que se propõe como mundo possível nessa interseção?

Denilson Baniwa – As contradições, os contrastes entre os mundos e como isso se intersecciona no espetáculo aparecem na forma da narrativa oral que se encontra com a narrativa de uma dramaturgia. Enquanto em uma comunidade indígena as histórias acontecem diariamente, continuamente – um pedaço e outro pedaço vão se juntando sem a necessidade de participação do público o tempo todo –, trazê-la para a cidade, para um palco, é como condensar essa história que se desenrola ao longo dos tempos em uma hora contratada, digamos, para isso. Acredito que os contrastes se encontram dessa maneira: as histórias indígenas acontecem no cotidiano, de forma não linear e, também, de forma não continuada; e nosso desafio é trazer essa forma para um modo de espetáculo em que temos um tempo pré-determinado e é preciso usá-lo para contar uma história. Parece que são partes desconectadas, mas, quando se para pra pensar no todo, se vê que há um sentido das coisas. Não linear, mas no final, tudo faz sentido. 

Localizo, agora, a pergunta no campo da arte e do teatro, mais especificamente, para pensar como a dimensão do ritual e do espetáculo compõem o trabalho. Em outras palavras, como a performatividade e a teatralidade dessas duas matrizes culturais constituem uma cena que, pelo teaser, já vemos compreender os grafismos Baniwa, máscaras zoomórficas, assim como piano e microfone? E como incidem no corpo dos atuantes?

Lilly Baniwa – A criação do processo se dá a partir das vivências. Desde o início do projeto, em nossos encontros, a gente foi trazendo conhecimentos tradicionais dos nossos povos e da nossa cultura. Do diferente olhar de se relacionar com o mundo ou com a natureza. A gente traz um corpo, o nosso próprio corpo, porque o corpo indígena em cena já tem toda essa trajetória de vida, história dos povos indígenas e histórias ancestrais. Só o corpo indígena em cena já é uma escrita carregada de conhecimentos ancestrais. Então, a gente traz esse corpo que fala com a natureza, corpo que fala com chuva, corpo que fala com vento, corpo que fala com a terra, para dentro da cena. É uma relação que não se tem na cidade. Quando eu trouxe a proposta do movimento do vento, meu parente logo reconheceu do que se tratava. Mas tenho certeza de que pessoas de outros povos ou não indígenas não saberiam do que se trata. Então, logo que eu fiz, Denilson falou: “entendi”. Esse é o movimento do vento – quando minha mãe entra em contato com o vento, com chuva, essas coisas que a gente vivencia nas nossas aldeias. Outra forma de escrita também são os grafismos, carregados de história e conhecimentos ancestrais. É como se fosse um livro pra gente. Os corpos que entram em contato com os tempos modernos, com os equipamentos da cena, como piano, microfone, são os mesmos corpos indígenas que têm contato com o vento, com a chuva, com a terra. Isso é muito importante, porque cada vez mais o ser humano vai se afastando da natureza e os nossos corpos trazem essa proposta de aproximação. A gente traz a performatividade de uma linguagem que tem contato com natureza, com chuva, com vento, com árvores. Essa linguagem específica que parte dos códigos e dos movimentos.

Desde sua vivência em uma Aldeia Xingu, passando pelo espetáculo Gavião de Duas Cabeças e por trabalhos com Ailton Krenak, Jaidel Esbell, Denilson e Lilly Baniwa, Andreia Duarte pesquisa a cosmogonia indígena como crítica à estruturação ocidental/neoliberal da sociedade. A política de destruição – social, cultural, econômica, ambiental etc. – em curso tem sido lida, por algumas perspectivas, como um “fim do mundo”, o do mundo Antropoceno. De que maneira Antes do Tempo Existir se inscreve como resposta a essa destruição?

Andreia Duarte – Antes do Tempo Existir é uma perspectiva de quando não havia a angústia de termos que correr atrás, a todo momento, de segurança e estabilidade para tudo o que envolve a vida. De ter que trabalhar em um sistema insano de produção capitalista cujo objetivo principal é apenas o lucro e a riqueza financeira, ainda que sobre a existência do planeta. É um ponto de vista no qual o carro, o celular, as coisas têm mais importância do que a montanha, o ar, a água e todos os corpos. Então, o espetáculo Antes do Tempo Existir traz a experiência como o tempo da vida, como um lugar em que todos nós podemos nos conectar. Em que o fundante da existência está mais no encontro, na relação e em um tempo alargado, no qual há a consciência de que somos coletivo e natureza. Tratar sobre o tempo, desta forma, espaço-temporalidade que ainda muitas comunidades originárias conseguem habitar, é pensar sobre outra possibilidade de estar no mundo agora.

Luciana Romagnolli é jornalista, crítica e curadora de teatro, editora-fundadora do site Horizonte da Cena e doutora em Artes Cênicas. Foi curadora do FIT-BH 2018 e dos Olhares Críticos da MITsp 2017-2020. Coordenadora de crítica do Janela de Dramaturgia. Autora dos livros Hoje, Não? e O mistério de haver olhos.