Teatro é aquilo que se recusa a reforçar o eu com que entramos no teatro.
O teatro é o modo pelo qual o eu é forçado a se abandonar. — Madhavi Menon
Por motivos que talvez (apenas talvez) não venham ao caso – por fazer parte do contexto de produção teatral de que se trata aqui – ao ser convidado para escrever este texto eu já conhecia uma das obras que compõem a curadoria sobre a qual teria de escrever: Eles fazem dança contemporânea, de Leandro Souza. Ora, antes mesmo de considerar o trabalho em si, pensei que seria produtivo começar a abordar a seleção das peças participantes da MITbr refletindo justamente sobre esse título, esse “eles”, inquietante terceira pessoa do plural, sujeito indeterminado impondo uma interrogação implícita sobre a possibilidade aparentemente evidente de se fazer arte, dança, teatro hoje.
Pois uma frase tão simples, banal, “eles fazem dança contemporânea”, escolhida para nomear um trabalho de dança – um solo, além do mais – perde qualquer naturalidade. Se já nos acostumamos, em festivais, tanto quanto em espaços de pesquisa a indagar o sentido do contemporâneo, se já cansamos de ler e citar (por exemplo) o ensaio de Giorgio Agamben sobre “O que é o contemporâneo?”, há alguns anos a questão principal parece ser antes “Quem faz o contemporâneo?” E mais: como nossa resposta à pergunta por quem faz o contemporâneo transforma o que é o contemporâneo? A ponto de a pergunta nem surpreender mais, já ser quase automática, esperada, obrigatória. Ainda bem.
Nesse sentido, claro que um espectador um pouco mais atento já sabia o que esperar da seleção da MITbr neste ano de 2022, podia saber mais ou menos a que tipo de peças teria oportunidade de assistir, assim como eu já pude ir começando a pensar antes mesmo de receber a lista completa de obras (não que ela não tenha também informado e transformado o curso do meu pensamento). Dito de modo explícito: podíamos esperar que, de sete trabalhos, uma maioria (cinco) se propusesse falar a partir do lugar da mulher (e que bom que essa mulher são mulheres, que ela é branca, negra, cis, trans, com ou sem deficiência). Podíamos esperar um bom número (se é que três de sete seja um bom número, se é que não podíamos esperar mais) discutindo explicitamente questões raciais – como faz o solo de Leandro Souza. Podíamos até mesmo esperar que apenas uma minoria viesse da região Sudeste e particularmente do famigerado eixo Rio-São Paulo (três, dos quais, aliás, um é o solo de uma artista curitibana, embora radicada aqui na cidade-sede da MITsp).
Mas de que serve esse saber? Esse já saber? Essa expectativa correspondida, essa não-surpresa diante de uma curadoria que atende a diversas demandas políticas urgentes surgidas – ou melhor, não surgidas, mas talvez ressurgidas com novo ímpeto e contexto para serem mais bem ouvidas – nos últimos anos? Ainda mais quando tais demandas, muitas vezes enunciadas pelos próprios artistas em seus trabalhos, partem da ideia ou da vontade de disrupção, de uma busca pela “potência do dissenso” para “romper com qualquer forma de pensamento estancado”, como ouvimos em Há mais futuro que passado, peça carioca que não apenas compõe a programação, mas – ao buscar um lugar para mulheres latino-americanas na História da Arte, dominada pelo homem branco europeu – reflete ela mesma sobre o sentido desse compor, desse ser (ou não) selecionado.
Ora, de modo algum eu poderia pretender que essa pergunta sobre o “já saber” seja uma contribuição original minha, oferecida como que de fora, para a discussão das peças. Pelo contrário, elas mesmas, ao menos algumas, parecem já se colocar a questão. A atriz e dramaturga Leonarda Glück, por exemplo, sublinha em seu Trava Bruta justamente a contradição de repetir um discurso de denúncia à transfobia para uma plateia que provavelmente já conhece (e aprova de antemão) a posição militante da criadora. Anunciando que “não vai dizer” aquilo que se poderia esperar dela, e listando tudo aquilo que estaria dispensado reiterar, ela necessariamente o diz e se desdiz, como quem reconhece certo impasse, certa impossibilidade de calar e ao mesmo tempo de dizer algo realmente novo, que pudesse surtir o desejado efeito de perturbação.
Nesse sentido, talvez o mais interessante não seja observar como a curadoria da MITbr deste ano corresponde àquilo que se demanda e que se espera, mas como algumas das peças tentam levar essa demanda a outro patamar, talvez mais inesperado. Pois quando “eles” se impõem como resposta à questão “quem é que faz, quem pode fazer o contemporâneo?”, quando outros autores e sujeitos entram em cena, talvez não seja apenas para responder à interrogação, à demanda. Talvez tenham suas próprias questões a contrapor. Como faz Souza em seu solo, repetindo exaustivamente: “Am I black enough for you?” e “Am I contemporary enough for you?”. Perguntas às vezes parcialmente traduzidas: “Sou preto/contemporâneo o bastante para você(s)?” Aqui, “contemporâneo” e “preto” não aceitam conviver pacificamente, não aceitam a conciliação fácil muitas vezes prometida pelo establishment artístico. Cada adjetivo põe em dúvida o sentido conhecido do outro, como se não fosse mais desejável fazer “dança contemporânea” tal como ela tem sido, e nem o que já se entende por “dança negra” (apesar de a programação também oferecer um bom exemplo dela com Ancés, de Tieta Macau).
Além do fato nada irrelevante de enunciar as interrogações em inglês – ainda mais agora, no contexto de um festival que apresentará as obras brasileiras para curadores estrangeiros com a promessa explícita de internacionalização, permitindo-nos interrogar se o destinatário da pergunta somos nós ou esses forasteiros, mas também o quanto tal diferenciação se sustenta de fato – podemos ler na insistência do artista uma recusa. “Eles” não querem apenas responder e corresponder a uma demanda mercadológica de diversidade, não aceitam ser um fetiche, embora saibam que muitas vezes é o fetiche e a demanda que lhes dão espaço para propor seus questionamentos e desafios. O monte de cabelo crespo sintético trabalhado e retrabalhado numa empreitada sisifiana aparece como bela imagem dessa complicação. A ação e a fala de Souza instauram um tempo não-linear, repetitivo, obstinado, tempo do impasse, do que não passa, que não deixa passar – e não nos deixa passar pano com (ou para) nossas “boas intenções”.
Mas, se o “you”/“você(s)” de Eles fazem dança contemporânea parece identificar o público como branco, europeu ou (pretensamente) europeizado, outro solo sugere romper também com essa identificação naturalizada. Em Despacho deferido, de Jaqueline Elesbão, o inquietante pronome “eles” passa a se referir aos brancos, nos quais se desvela justamente a expectativa que já discutimos: “Finalmente entendemos: eles precisam da gente, do que a gente representa. Somos importantes, (…) sabemos do nosso poder, sabemos a fraqueza deles, (…) o jogo está todo nas nossas mãos”. As palavras vêm acompanhadas de um riso de gozo, que pode soar quase maléfico (mas talvez apenas para os ouvidos “deles” que não são os endereçados). Ao mesmo tempo, não endereçar os brancos, falar com os seus, também tem consequências, podendo explicitar conflitos e impasses internos. Afinal, se o jogo está “nas nossas mãos”, esse “nós” também passa a ser responsável pelo desmonte dessa estrutura, e logo, potencialmente responsável pela sua manutenção enquanto o desmonte não ocorrer. Talvez venha daí a cena em que a bailarina luta capoeira com/contra si mesma, torna-se a própria adversária no jogo que descobriu ter nas mãos, possível alvo da própria recém-descoberta força.
Tal potência, que ao ser afirmada, periga rapidamente, quase imperceptivelmente, se transformar em seu inverso, também está em Fortaleza, da cearense Cia. Dita, em que bailarinas e bailarinos nus buscam encarnar “o corpo periférico que oscila entre resistência e escassez”, como se lê na descrição da pesquisa pelo grupo. Cobrindo os rostos como quem deseja esconder ou apagar a própria identidade, os performers esboçam um movimento aparentemente contrário ao da maior parte das peças da programação, ademais enfatizando a coletividade mais que individualidades. O mesmo gesto é intentado e ao mesmo tempo tem sua possibilidade disputada por Jéssica Teixeira, que começa o solo E.L.A. pedindo que desliguem as luzes: “é melhor assim, sem contato, sem contorno”, ouvimos dizer uma voz ainda sem rosto, mas que se descreve ela mesma a partir do sotaque cearense que a localiza. A hesitação entre identificação e indeterminação nos leva de volta aos pronomes de terceira pessoa, aqui no feminino singular, e, ao mesmo tempo, sigla para a doença que determina sua identidade desde que a luz se acende e seu corpo se torna visível: “Eu me chamo ‘Ela’”, diz a atriz, ou será que ela disse “E.L.A.”?
Ora, a aproximação das duas peças cearenses também impõe um contraste. Afinal, o que significa ver esse corpo e a deficiência (ou aquilo que lemos como tal) que nele se evidencia, que o evidencia, em relação aos corpos “belos”, “potentes”, “fortes”, de Fortaleza (e de outras peças da programação, aliás)? Como repensar o que entendemos por “beleza”, “potência” e “fortaleza” ao ver essas três qualidades, ainda que de modos inesperados, no corpo d’E.L.A.? O que um corpo “impossível” – na formulação de Eliane Robert Moraes citada pela atriz – significa e ressignifica para os corpos (já) “possíveis”, viáveis, aceitos, valorizados? Como muda aquilo que entendemos e valorizamos nas artes corporais? Como habitar um corpo “sem deficiência” e fazer arte a partir dele sem normalizá-lo, sem torná-lo o padrão, nem mesmo para nós mesmos? Questões demonstrativas de que a desidentificação propiciada pelo escuro, mesmo breve, pode ser bem-vinda: “Em geral não tenho a oportunidade de falar primeiro porque ‘ELE’ sempre chega primeiro gritando”. O que aliás não vale apenas para a condição de Teixeira (bem menos conhecida do que as tematizadas da maior parte dos trabalhos), já que – ela mesma coloca, pois “não pode deixar de lembrar o óbvio” – a cor da pele (não branca) e a sexualidade (não heterocisnormativa) também foram vistas no passado como doenças degenerativas.
Por isso, se me permitem o spoiler, o imperativo com que E.L.A. termina é tão instigante quanto contraintuitivo: “desconhece-te a ti mesma”. Pois uma das experiências fundamentais que a cena, a dança, a arte – contemporâneas, qualquer que seja o sentido do adjetivo – nos proporcionam, podem nos proporcionar, é a do desconhecimento, do enigma, do não saber. Um tempo suspenso em que podemos nos permitir ignorar aquilo que, na realidade cotidiana, somos obrigados a lembrar o tempo todo, neste nosso tempo em que nós, artistas e espectadores, já sabemos tudo, já estamos cansados de saber. Eu diria mais: diria que essa é a condição necessária para toda verdadeira experiência, para que algo aconteça, para que algo possa nos acontecer e nos tirar da continuidade imposta por nossa (hiper)consciência do mundo com seus problemas e limitações já identificados, teorizados, denunciados à exaustão.
O que talvez nos permitisse dizer ainda mais sobre aquilo que se podia saber, que se podia esperar da seleção das peças brasileiras para compor a mostra. Por exemplo, um espectador atento às tendências e questões da cena recente, desse recorte específico da cena de hoje que tem merecido (entre muitas aspas) ser chamado de cena contemporânea, e, ainda mais, atento às discussões políticas que se tornaram mais inescapáveis nos últimos anos, esse espectador, enfim, já poderia saber ou ao menos suspeitar que outras identidades, temáticas e questões, por mais relevantes e urgentes que possam ser, talvez não estivessem tão representadas na curadoria proposta.
Quantos dos trabalhos discutem prioritariamente questões de classe? Ou questões ecológicas? Ou mesmo perspectivas queer (pensando o tal “queer” como uma abordagem do gênero e da sexualidade para além da fixação em identidades, para além da operação – às vezes quase policial e possivelmente redutora, excludente, constrangedora – de identificação obrigatória)? Ou as perspectivas de(s)coloniais, adjetivo tão citado ultimamente (mas pouco visto em prática, o que não significa que só sejam apresentadas perspectivas “colonizadas”)? Resumindo, que lugar há para obras que pensem questões urgentes do presente de modo coletivo, transindividual ou mesmo impessoal?
(Isso para não falar de abordagens outras, que sequer passam pela nomeação de um – ou mais, mas em geral apenas um mesmo – problema extrateatral entendido como premente, ao qual a cena supostamente deveria se submeter, muitas vezes gerando peças que nem por isso podem ser consideradas apolíticas ou alienadas.)
Não quero com isso sugerir que tais temas excluídos sejam “os que realmente importam” em oposição aos privilegiados pela curadoria. Muito menos culpar os artistas e obras selecionados por não tratar desses temas em vez daqueles que escolheram. Mas eles me parecem tão importantes quanto, embora difíceis de serem tratados partindo de perspectivas individuais. O que nos leva a mais uma característica da seleção que talvez já pudéssemos e devêssemos ter esperado: dos sete trabalhos, cinco são solos. Isso pode ter explicações bastante concretas ligadas a orçamentos e dificuldades de produção e circulação, mas também diz muito dos modos cada vez mais dominantes de habitar o mundo. Dos outros dois, um traz três atrizes falando sempre sobre mulheres individuais, grandes (ainda que esquecidas, obliteradas) personalidades do mundo da arte.
Por outro lado, para não sermos simplistas, seria necessário admitir que, se posso dizer que uma peça com três atrizes aborda sua temática de modo individualizante, também há a possibilidade de pelo menos algum dos cinco solos propor uma perspectiva coletiva, ainda que com apenas um artista em cena. Nesse sentido, o plural do “eles” que fazem dança contemporânea no título do trabalho de Souza é sugestivo.
Aliás, considerando a reflexão que tentei propor aqui, talvez venha sim, ao caso, informar, antes de encerrar, que no momento mesmo em que recebi o convite da mostra para escrever este texto, para pensar sobre a seleção de peças brasileiras a que se poderá assistir este ano dentro da MITbr, também fiquei sabendo (isto é, pude deduzir) que minhas próprias obras muito provavelmente estavam excluídas dessa seleção, feita, como sempre, a partir de uma chamada aberta a que todo ano minha companhia responde. Não sou, pois, observador isento, mas artista implicado no contexto de produção e circulação em que uma mostra como a MITsp adquiriu importância inegável desde seu surgimento. Dizer isso desde já talvez seja mais honesto. Mas também seria o caso de lembrar que quem fala do lugar distanciado da crítica também não deixa de ter as próprias implicações, sempre se engaja com uma concepção de teatro, de política, de mundo.
Mais do que isso, sou um artista excluído desta seleção, o que não significa que deva ou queira me colocar contrário a ela. Até porque eu já sabia que as chances eram poucas para as obras que inscrevi. Também não sou contrário à exclusão em si, pois toda seleção sempre produzirá um conjunto dos não-selecionados, via de regra maior que o conjunto dos selecionados. Mas, lembremos, é precisamente sobre um tipo de lógica de seleção e exclusão que as peças selecionadas parecem querer falar.
De todo modo, se coube a mim escrever este texto, e não aos próprios curadores que selecionaram os trabalhos, também suponho que não interesse aqui uma justificação ou defesa dessa seleção, mas antes um questionamento que busque ler os trabalhos uns em relação aos outros para pensar como a curadoria representa certo pensamento cênico e político do presente, tanto em sua força quanto em suas limitações e contradições. Vale para meu texto tanto quanto para as peças da mostra a ideia de Virginia Woolf referida no início de Há mais futuro que passado, quase como uma epígrafe: sobretudo no que diz respeito àqueles temas mais espinhosos, talvez não possamos pretender oferecer verdades, saberes, mas “apenas mostrar como se chegou a qualquer opinião que de fato se tenha” e “dar à plateia a oportunidade de tirar as próprias conclusões enquanto observa as limitações, os preconceitos e as idiossincrasias de quem fala”.
Observação: Após a publicação deste texto no site da MITsp, fui informado pelo professor Ferdinando Martins (a quem agradeço muito) de que a atriz Jéssica Teixeira não tem Esclerose Lateral Amiotrófica, mas outra doença degenerativa, sendo a E.L.A. citada no título e no espetáculo como uma espécie de metáfora. Peço desculpas pela dedução equivocada e acrescento aqui a informação correta, que me parece corroborar a ideia de indeterminação e desidentificação, central para o argumento que tentei traçar aqui.
Artur Kon é ator e dramaturgo na Cia de Teatro Acidental, fundada com colegas no curso de Artes Cênicas na Unicamp. Mestre e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP, autor do livro Da teatrocracia: Estética e política do teatro paulistano contemporâneo (Ed. Annablume, 2017) e organizador dos livros Elfriede Jelinek: Do texto impotente ao teatro impossível e Cia de Teatro Acidental: Trilogia dos afetos políticos (ambos no prelo). Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado na ECA-USP.