O que me parece ser a maneira mais justa de tentar dar conta
de uma realidade é tentar identificá-la aos poucos, aos trancos e barrancos

Mohamed El Khatib

Com o desejo de uma aproximação vigorosa da realidade, parcela considerável das práticas cênicas das últimas décadas parte da premissa de que, para isso, é preciso se afastar de qualquer ideia de representação realista em cena. Se muitas dramaturgias ou encenações feitas na chave naturalista/realista articulavam uma realidade domesticada por meio de uma “trama” ou uma “direção” mais ou menos ordenada e segura, agora muitos grupos, diretores e diretoras preferem se aproximar do real menos a partir de uma representação bem-acabada e mais a partir da irrupção em cena de dados, fragmentos ou instâncias da vida cotidiana.  

O que ficou conhecido de modo algo genérico como “teatro documentário” é parte dessa vertente que visa recontar ou reconstruir cenicamente histórias ou contextos reais. Assim pode ser lida a produção recente do diretor, ator e escritor franco-marroquino Mohamed El Khatib[1], discutivelmente conhecido na Europa como um dos mais importantes diretores “sociológicos” do momento. No entanto, a alcunha de “sociológico”, assim como a de “documental”, parecem não dar conta da complexidade de um tipo de trabalho que preza, antes de mais nada, pelo baralhamento das fronteiras entre o real e o ficcional, entre o que é e o que não é teatro; além disso, ele se dá, principalmente, no questionamento de generalizações sociais rápidas. Um dos cofundadores em 2008 do coletivo Zirlib, que congrega cinegrafistas, músicos, atores, autores, pesquisadores e dançarinos, Mohamed El Khatib parte da premissa de que qualquer trabalho estético tem sentido político. Isso não significa, no entanto, alinhavar a realidade a partir do desejo de comprovação de uma opinião forte prévia; segundo ele, uma escrita do tempo presente precisa dar conta da complexidade dos sujeitos e dos conflitos reais e, por isso, não deve se privar de um diálogo íntimo com o cotidiano mais banal, por mais contraditório que ele seja.

Seja nas instalações, no cinema ou no teatro, o trabalho de El Khatib elabora um tipo de poética do real baseada no ready-made. Esta operação de origem vanguardista, que nas experimentações de Marcel Duchamp se propunha a rediscutir o estatuto da arte a partir da eleição de objetos já feitos e de uso prático (um urinol, uma roda de bicicleta) e de sua elevação à condição de objeto artístico, aqui ela se pauta por outro aspecto: o de contrariar a ênfase modernista na artesania, no trabalho com a forma e com a montagem. Mohamed El Khatib passa a pensar o espetáculo menos como a construção de uma narrativa ou o resultado de uma direção de atores (muito menos como zona de questionamentos meta-teatrais) e mais como um processo de colagem de amostras do mundo real.

A princípio, se propõe a uma mistura indistinta de materiais em torno de um problema ou de um contexto específico e tenta, a partir daí, produzir o que chama de uma “verdade elusiva”, algo o mais próximo possível do que seria não uma cena naturalista, mas a dinâmica irregular, recortada e intensa da vida real. Daí seu apreço por reunir em cena pessoas que dificilmente se cruzariam umas com as outras ou mesmo reunir sujeitos com experiências sociais muito distintas. Nessa “colagem” social, nesse processo de fricção de diferentes narrativas e de diferentes pontos de vista, emergiriam histórias com mais força de verdade, justamente porque feitas de combinações ou de conflitos não artificializados pela dinâmica do “ensemble” cênico. Os sujeitos mobilizados em cena não estão ali para “parecerem” reais, mas para de algum modo se afetarem uns aos outros no palco e afetar a plateia. Ainda que em outra chave, continuamos em uma seara eminentemente política: interessa o impacto sobre o outro, interessa o impacto na própria realidade.

Uma poética do real e do encontro

O processo de trabalho de Mohamed El Khatib bebe de procedimentos típicos da pesquisa social e dos métodos de pesquisa etnográfica, mas é também afim a um tipo de escrita teatral contemporânea engajada, que se volta ao mergulho em realidades sociais e à interrogação de territórios e discursos de exclusão.

Este tipo de investigação está no trabalho que o projetou internacionalmente, Partir com Beleza (Finir en beauté), de 2014[2]. Sozinho no palco, Mohamed El Khatib elabora no palco sua própria experiência: a partida da mãe, morta devido a um câncer descoberto em 2012. Como entender essa contração do tempo que se dá com a perda, essa interrupção que se impõe como um corte na vida cotidiana? Menos do que uma história com fim triste – já sabemos desde o início, e sem sensacionalismo, que sua mãe está morta – o espetáculo busca contar uma realidade a partir de sua paulatina identificação: gravações da mãe no leito hospitalar, mensagens de trabalho, declarações de apoio de amigos, documentos da repatriação do corpo, enfim, índices recortados de fontes “reais” – fragmentos que vão sendo colocados em ordem para dar conta do não-dito, do irrepresentável. Compartilhando a intimidade em um espaço público, colocando-a na perspectiva de um tempo comum, ele dá ao corpo e a memória da mãe imigrante e faxineira uma dimensão eminentemente política.

Essa operação que recoloca o íntimo no público está também no espetáculo É a vida (C’est la vie), de 2017. Ali, El Khatib reúne dois atores, um deles já no final de sua carreira – Daniel Kenigsberg, 61 – e a outra no auge de seu trabalho como atriz – Fany Catel, 37. Ambos, no entanto, atravessados por uma dor comum: perderam filhos de 25 e 5 anos, respectivamente. O mote, logo de saída desolador, se transforma numa investigação sensível dessa tragédia definitiva. Na tentativa de entender esse evento que inverte a expectativa de ciclo vital natural, que divide a vida em um antes e um depois, El Khatib mescla depoimentos dos dois atores a uma miríade de depoimentos de outros “pais abandonados”.

Essa mesma disposição do ready-made é o que coloca em cena os depoimentos de dezenas de crianças de oito anos no espetáculo A disputa (La Dispute), de 2019, em que o diretor, a partir de semanas de investigação em uma escola primária, busca entender como as crianças de uma escola primária foram afetadas pelo divórcio de seus pais. Após semanas de estudo e convívio naquele local, percebeu que a experiência da separação pareceria ser hegemônica entre crianças daquela faixa etária. Percebeu também que aquele dado se tornou central na formação de cada uma como sujeito. Recortes de depoimentos, imagens e dados vão desenhando essa realidade em cena, perscrutando como esse evento decisivo se desdobra na vida daquelas crianças, como são levadas a decidir com quem ficar e mesmo como cada uma reconstrói sua própria vida a partir dali. Interessa, portanto, não a expertise, mas experiência de cada sujeito; não a digressão sociológica, mas a fonte da informação; não a análise profissional, mas a dimensão pessoal do ocorrido. Ao final, um painel pouco homogêneo, mas vigorosamente sensível e político.

Estádio – teatro íntimo, território complexo

            A cena que se transforma em espaço de elaboração da dimensão social e política dos afetos ganha dimensão exemplar no espetáculo Estádio (Stadium), de 2017, que integra a programação desta 8ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Concebido inicialmente como homenagem ao pai do próprio diretor – aquele um amante do futebol, este um jogador compenetrado na juventude – Estádio coloca em cena mais de 53 torcedores do RC de Lens, todos eles parte do que é considerada a torcida afetivamente mais engajada da França.

            A dramaturgia da realidade se monta a partir de pequenas unidades, em um ready-made íntimo e bem-humorado de diferentes subjetividades dessas famílias proletárias do norte da França. O desenho do roteiro é simples e foge a artificialidades: de modo quase aleatório, depoimentos em vídeo e no microfone se mesclam à lenta entrada da torcida na arquibancada; uma octogenária, crianças, jovens e adultos alternam com o burburinho contagiantes das mascotes do time, da banda, das líderes de torcida e mesmo da barraca de fritas. O conjunto cria menos a sensação de um estudo monográfico do “ser torcedor” e mais a de um mergulho vertical e vertiginoso nas realidades de desemprego e solidão, de acolhimento e partilha, de compromisso e solidariedade que atravessam o cotidiano da daquelas pessoas em relação com seu time do coração.

Resultado de um ano de mergulho naquela comunidade, Mohamed El Khatib parece assim criar um quadro destituído de paternalismo ou de esnobismo intelectual. Consciente de que, tradicionalmente, grupos de torcedores são vistos sob uma série de estereótipos de gritaria, violência e xenofobia, ele prefere abordagem diversa. Daí a necessidade de reconhecermos que mesmo o ready-made não é um movimento de todo aleatório: a escolha do material que vem à cena é política. Tal recorte pode ter reverberação particularmente interessante no Brasil, onde o discurso midiático reforça o universo da torcida de futebol como o de um grupo homogêneo, avesso às mulheres, brutal e regado a álcool. Sem negar que a violência dos estádios se alimenta de uma cultura da violência que está para além da partida esportiva, o espetáculo de El Khatib parece nos pedir para que tais imagens não se tornem um dispositivo de controle do imaginário. Afinal, parte importante da luta por uma nova realidade depende de buscarmos nesse mesmo real as fissuras que presentificam outras realidades possíveis. Talvez venha desse impulso seu destaque em cena da gentileza, dos hinos quase líricos, das dezenas de mulheres torcedoras, das crianças animadas, da torcida pelo time como um antídoto à solidão… Mohamed El Khatib revela assim uma realidade de valores complexos. Ali, as intimidades são mostradas, as posições políticas desafiadas. A certa altura, abrirão uma faixa: “Racistas? ”; logo após: “Não esperamos nada do atual governo”.  Pessoas comuns em cena, colocadas em uma arquibancada com seus afetos e ideias exatamente diante da plateia. Quem mira quem? Seus corpos, os dizeres nas faixas, parecem dizer algo não só sobre eles, mas também muito sobre nós.


[1] Artista associado do Théâtre de la Ville de Paris, do Centre Dramatique National de Tours – Théâtre Olympia e do Théâtre National de Bretagne – Centre Européen Théâtral et Chorégraphique, Mohamed El Khatib carrega também uma formação em sociologia em uma tese sobre a crítica teatral na imprensa nacional.

[2] O espetáculo integrou a programação da 6ª MITsp em 2019.

Rodrigo Alves do Nascimento – É professor, tradutor e crítico de teatro do site Cena Aberta. Foi professor de História do Teatro no Instituto de Artes da UNESP. Tem doutorado em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo. Foi crítico residente da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo em 2020 e há anos dedica-se à pesquisa dos teatros russo e brasileiro.  É autor de “Tchékhov e os Palcos Brasileiros”, publicado pela Editora Perspectiva em 2018